A rádio, as pessoas e as suas coisinhas



A rádio tem a sorte de ter um estudioso como o professor Rogério Santos. Entre várias obras publicadas, artigos e comunicações diversas, tem HISTÓRIA DA RÁDIO EM PORTUGAL, em https://radio.hypotheses.org/.

Aconselho, a quem gosta de rádio, a passar pelo site. Lá se conta muita coisa interessante. Deparei-me com a “Micas Eletromecânica”, figura que conheci pessoalmente e cuja fama gerava invejas e maledicência. O Professor Rogério Santos, com base numa carta depositada na Torre do Tombo, conta a história que aqui se reproduz.

Rogério Santos
Doctor of Philosophy

“Lover Come Back to Me foi traduzido por Amor Salta para as Minhas Costas. A Micas Eletromecânica não deixava por mãos alheias uma mais que boa tradução! O problema maior era quando dizia ládi em referência a uma senhora, pois havia sempre uns ouvidos sensíveis. Do relato sobre a intervenção da locutora, ficou ainda a resposta torta do dono da rádio. A Micas Eletromecânica gostava de ir para o estúdio de avental e de chinelos, diziam os críticos. Ela era a verdadeira super-mulher, dividida entre dona de casa e radialista. Isto tudo se passaria no já longínquo novembro de 1945. De todos os modos, simpatizo com a tradução. Andar às costas de alguém é tão polissémico e a permitir diversas interpretações para um psicanalista.”

O Electro-Mecânico ficava na rua de Santa Catarina, por cima da confeitaria Atlântida. Lembro-me do cheiro a bolos que pairava naquele primeiro andar onde conheci a Liliana de Abreu, a Maria do Carmo, o Álvaro Pacheco e o Alfredo Alvela, mais tarde, meus colegas no Rádio Clube Português. Júlio Guimarães, Fernando Gonçalves, António Batista, Henrique Geração, Aníbal Barroso frequentavam, mais ou menos assiduamente, os estúdios sempre em renovação.  Manuel Moreira foi dos primeiros a comprar equipamento Ampex, de qualidade top em material de gravação de som.

Por tudo isto estou à vontade para dizer que a senhora em questão tinha cultura suficiente para não cometer um erro tão crasso. A mesma história foi-me contada em Lisboa, pessoalizando-a também numa voz feminina. A cultura “marialva” aproveitava tudo para subalternizar o papel da mulher na sociedade.

Como esta, há muitas histórias, mais ou menos anedóticas, como a do locutor que se despiu na cabine enquanto fazia a emissão, na jornalista que falava do rio Cavado, em vez de Cávado, ou da que esmiuçava o mapa de África para descobrir onde ficava o apartheid.

A resposta de Rogério Santos não tardou.

Caro Rui de Melo, caro amigo. Eu procuro nunca especular sobre um assunto de História. A minha fonte é uma carta depositada na Torre do Tombo, datada e assinada. Logo, não deve (pode) ser ignorada. A hipótese mais extrema de erro por parte de quem escreveu seria a de uma calúnia numa época de censura e maledicência, mas parece-me pouco provável. Os outros exemplos não os comento, por não possuir documentação adequada.

A maledicência era corriqueira em relação a quem fazia rádio, cantava, fazia teatro ou tinha um qualquer destaque público. Embora criança, acompanhei todo aquele ambiente feito de gente interessada, interessante, mas com alguma megalomania que, frequentemente, revelava uma ausência completa do sentido do ridículo.

A carta da Torre do Tombo é semelhante a tantas outras que aliviava as frustrações de certa gente. Umas vezes escondiam-se no anonimato e outras usavam nomes inventados. Era um fenómeno muito frequente.

Conhecedor dos cuidados criteriosos do Professor Rogério Santos, achei por bem dar-lhe o meu testemunho.

A Laura Moreira, por viver em união de facto com o proprietário Manuel Moreira, situação "escandalosa" para a época, era uma mulher de iniciativa, invejada e muito criticada. Dirigia peças de teatro, convidava autores, fazia adaptações de obras consagradas. Por lá vi gente dos "Modestos" e do "Experimental". Eu próprio fui dirigido por ela em papéis infantis de teatro radiofónico.

Quando o Electro-Mecânico deixou a Rua de Santa Catarina e se mudou para D. João IV, ela resolveu não acompanhar a mudança porque, julgo saber, não concordava com ela. E lá se recolheu na casa do Jardim de S. Lázaro onde morava.

Lembro-me da sua figura a um tempo bonacheirona, mas determinada na sua "autoridade". O pessoal que por lá passava tinha-lhe respeito.

Finalmente, quero expressar a minha admiração, o meu respeito e agradecimento pelo trabalho desenvolvido pelo Rogério. É um serviço público que não há dinheiro que pague. Um grande abraço do

Rui de Melo

Professor Associado, aposentado, da Universidade Fernando Pessoa

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca

e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

 

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