A rádio no contexto da comunicação multiplataforma
Mariano Cebrian Herreros foi um dos meus professores no
Curso de Doutorado que completei na Universidade Pontificia de Salamanca. A sua
obra é extensa e de indispensável consulta por quem se interesse pelo
audiovisual. O balanço que faz sobre a convergência mediática abre ampla
perspetiva sobre um ambiente em acelerada inovação e reformulação. Neste
trabalho, Mariano convida-nos a penetrar no contexto da inserção da rádio no
atual ecossistema comunicativo, analisando as suas especificidades e
adaptações.
A rádio atual ampliou o seu campo comunicativo próprio e
entrou na disputa num conjunto complexo de plataformas comunicativas. Já não se
pode examinar estas mudanças sem considerar as transformações internas e o
grande desenvolvimento dos demais meios e serviços com que tem que estabelecer
relações tensas de readequações para manter a sua implantação na sociedade. A
rádio integra um ecossistema comunicativo em constante mutação, complexo e com
adaptações.
Dentro desta complexidade os meios de comunicação e serviços
congregam-se em unidades organizativas superiores. Já se ampliou a conceção de
agrupar muitos meios nacionais e internacionais a uma organização mediante as
grandes plataformas de comunicação. Plataformas com capacidade de congregar
todos os meios de comunicação existentes, gerar outros e estabelecer novas
relações entre elas. A rádio tradicional, concebida nas redes hertzianas, teve
um desenvolvimento particular, ampliou o seu campo com a incorporação do FM e
acrescentou às suas programações generalistas as ofertas especializadas por
temas, por destinatários e por territórios. Posteriormente colocou-se nas redes
de cabo e satélite em alguns países de maneira exclusiva e em outros ligadas
com outros meios, como a televisão ou a telefonia. Deste modo, desenvolveram-se
as três plataformas clássicas de difusão: ondas hertzianas, cabo e satélite com
modelos fundamentalmente unidirecionais, salvo o caso da rádio, já que graças
às suas ligações e alianças com o telefone sempre teve uma maior abertura ao
diálogo direto com seus seguidores.
Durante a última década duas novas plataformas entraram em
funcionamento, a internet e a telefonia móvel com uma ampla diversificação de
subplataformas, as quais transformaram radicalmente o sistema comunicativo em
geral e o da rádio em particular, o que criou um ecossistema comunicacional
inovador, em permanente mudança e no qual as alterações de um de seus
componentes repercutem nos demais.
Cebrián tem opinião sobre os “futuristas” que dão por mortos
os meios de comunicação: média impressa, rádio e televisão, mas se esquecem de
dizer que se tratam dos meios massivos, além de outros elementos que permitem a
eles transformar-se e sobreviver. O importante não é o desaparecimento de
determinados suportes, mas a continuidade do que cada um acrescenta como seu. É
possível que a média impressa desapareça, mas o jornalismo escrito sobreviverá;
é possível que as ondas hertzianas percam tanta audiência que se tornem
irreconhecíveis como emissoras de rádio, mas o consumo de documentos sonoros,
música e informação oral sobreviverá; é possível que a televisão generalista
seja deslocada pelo público entusiasmado por conteúdos muito específicos, mas
serão mantidas as transmissões ao vivo de grandes eventos, a informação
audiovisual, a ficção e o entretenimento. A tecnologia é importante não como
mero suporte de produção, registo, distribuição ou receção, mas porque introduz
outras variáveis comunicativas, promove outros conteúdos e emprega outras
linguagens de acordo com o grupo de usuários, com seus territórios e com cada
período. Muda a tecnologia, renova-se a sociedade, modificam-se os gostos, mas
prevalece a comunicação mediada pela inovação tecnológica entre os membros da
sociedade.
Seguindo este investigador, a rádio entrou numa fase de
transição permanente pela aceleração da tecnologia. Não se vislumbra um ponto
de chegada fixo. Antes a FM foi introduzida e houve um tempo para sossegar,
ensaiar, depurar e permanecer. Agora a internet penetra e tão logo experimentou
uma oferta e imediatamente apareceram outros desenvolvimentos nela que superam
a conceção ciber-radiofónica para iniciar outras modalidades comunicacionais
sonoras. A oferta atual da internet mudou em relação aos últimos anos. Agora
estabelece-se o início da rádio móvel, mas não se conhece o seu projeto de
futuro.
A rádio é a transformação da tecnologia em sons. A rádio
nasceu como tecnologia, é tecnologia e continua a ser tecnologia. Não pode
prescindir dela ou deixa de ser rádio. Empregou e continua empregando a
tecnologia velha ou tradicional, as inovações que se produzem e se situa na
vanguarda com a tecnologia de ponta.
Mas a tecnologia pela tecnologia não tem sentido. A mediação
técnica não é puro instrumento. É um processo comunicacional. A técnica
interessa enquanto adquire capacidade para gerar novos símbolos e outras formas
de expressão e transmissão de significados.
A terceira grande transformação tecnológica e comunicacional
da rádio ou o enquadramento histórico de Cebrián Herreros, explicando que a
rádio empreendeu a terceira transformação, depois da primeira da década de
40-50 baseada nos contributos dos transístores, gravadores magnéticos,
frequência modulada e estereofonia e a segunda da década de 80-90 da
digitalização e convergência dos meios (CEBRIÁN, 1994, pp. 151-168). A terceira
transformação produz-se pela presença das plataformas de internet e telefonia e
a convergência das plataformas anteriores com as novas até gerar o ambiente
multiplataforma atual. Passa-se da convergência de meios ou multimédia à
convergência multiplataforma. Nasce uma nova conceção comunicacional interativa
em que predominam, além das contribuições específicas de cada uma, as
sinergias, inter-relações e ligações entre elas para explorar os meios,
conteúdos e serviços com orientações de adaptação e criação de outras
linguagens em que a navegação, hipertextos e interatividade se situam como
eixos para o avanço.
Evidencia-se que o radiofónico se assemelha ao impresso, à
televisão, ao cinema quando todos utilizam uma linguagem digital comum, mas
cada um deles oferece o final do processo uma linguagem reconhecível pelos
usuários. As linguagens utilizam os símbolos para representar a realidade. O
digital, afinal, termina também sendo necessariamente analógico para que seja
compreendido pelos sentidos do ser humano e sem os quais não poderia haver um
conhecimento da sua realidade externa e não haveria um processo de conhecimento
sequer.
Aprecia-se, então, uma convergência tecnológica, mas
mantém-se a divergência expressiva de cada uma das linguagens e das formas
expressivas utilizadas. A linguagem tecnológica potencializa e enriquece a
linguagem expressiva e estética. Não existe oposição nem contradição alguma, ao
contrário.
A edição apresenta outras potencialidades de tratamentos
conhecidos como de pós-produção. Introduz uma linguagem digital para
transformar e editar sons previamente registados ou gerar de maneira sintética
outros novos, mediante a acusmática.
A difusão expande-se e converte-se em compartilhamento
bidirecional entre usuários. As telecomunicações, que propiciam os processos de
difusão tecnológica dos meios eletrónicos tradicionais, convergem com a
informática para propiciar os tratamentos automáticos e origina a telemática,
uma inovação tecnológica que transcende a convergência e que vai além da união
num acrónimo original para contribuir para as redes de comunicação de ida e
volta transformadoras das relações entre os usuários ao fomentar a mudança de
papéis dos emissores e recetores tradicionais.
O telefone constituiu-se na tecnologia mediática de maior
transformação para a rádio não sob o ponto de vista da convergência tecnológica
entre dois meios, mas na perspetiva de mudança comunicativa. É a tecnologia que
transforma a radiodifusão numa autêntica radiocomunicação. Incorpora-se uma
enorme capacidade de diálogo, de comunicação horizontal e, em suma, de geração
de uma cultura do diálogo, que é a que lhe permitiu em todo momento estar
situada na vanguarda da participação e presença da audiência nos conteúdos
radiofónicos com seus telefonemas, perguntas, propostas, informações, opiniões.
A rádio esteve sempre ligada ao telefone tanto para a
produção: linhas de conexão entre emissoras para se organizarem em cadeia, o
duplex e o multiplex, como para a transmissão. As inovações telefónicas foram
sendo incorporadas para estabelecer uma conversa e incentivar as votações dos
seguidores. É uma convergência inseparável na rádio atual tanto da tradicional
como da cibermediática e da telefonia móvel em que todo o processo
técnico-comunicativo junto às suas consequências se baseia na mediação
telefónica de pleno intercâmbio de comunicações entre os usuários.
As emissoras desenvolveram novos serviços interativos
através dos telefones fixos mediante números com prefixos diferenciados pela
tarifação para os quais os usuários telefonam.
As plataformas tradicionais perdem valor à medida que outras
ofertas fragmentam os mercados. A limitação do espaço radioelétrico, a
necessidade de licença e o elevado custo de manutenção da rede na plataforma
perdem no confronto com a internet que tem como limite apenas a capacidade do
cabo que se emprega e da largura de banda com que se queira transmitir. Os
usuários acedem aos conteúdos sem restrições, nem intermediação alguma.
Com a rádio tradicional emerge a ciber-rádio e a rádio
móvel. O desenvolvimento técnico-mediático produz-se em várias fases. A
primeira constitui-se pela consideração da nova tecnologia como um mero
instrumento de radiodifusão. A rádio tradicional utiliza a internet como outro
suporte de difusão. A segunda incorpora certas adaptações à nova tecnologia e
nascem outras iniciativas, mas copiando a anterior. A rádio tradicional adapta
algumas das possibilidades da internet: fragmentações de programação, inclusão
de processos de interatividade e diálogo entre a emissora e os usuários com
sistemas eletrónicos, chats, fóruns. A terceira compreende uma proposta
original muito diferenciada no seu tratamento em relação à anterior. São
geradas novas opções: interatividade entre usuários, ligação a redes sociais,
versões diferenciadas para cada inovação. Em alguns destes casos já se discute
sobre se pertencem à perspetiva do radiofónico ou se se criam meios sonoros
diferentes. Neste momento e até que não existam ruturas claras é preferível
continuar falando de extensões da rádio e da ciber-rádio (CEBRIÁN HERREROS,
2009, pp. 11-23).
São três fases de desenvolvimento progressivo. A presença de
uma fase posterior não elimina as anteriores. Da mesma maneira, pode-se
considerar como na internet se mantém a função instrumental de radiodifusão da
programação da emissora matriz de forma simultânea.
Algo similar acontece na plataforma de telefonia móvel. Ela
ainda se encontra na transição da primeira para a segunda fase, do uso
instrumental às adaptações, sem que apareçam, ainda, inovações realmente
diferentes e originais em relação à ciber-rádio.
Este processo observa-se nas inovações mais avançadas. Ainda
existem emissoras de rádio que não passaram da etapa inicial. Por isso deve-se
examinar a evolução de cada emissora em particular para compreender em que
situação realmente se encontra e quais suas contribuições originais em relação
às demais ciber- rádios.
Sou de opinião que o que Paula Cordeiro concluía no seu
trabalho de 2003 se mantém perfeitamente atual.
“Portugal apresenta um panorama que revela uma ideia de transição de
paradigma comunicacional que respeita aos conceitos de consensos, dialogismos e
interatividade, expostos na aceção do carácter monológico – dialógico que tem
traduzido a evolução da comunicação radiofónica. A fase que atravessamos é
ainda de transição, entre uma condição dialógica e outra, manifestamente interativa,
com as hesitações de percurso inerentes à passagem da palavra analógica para a
conceptualização de um modelo plenamente interativo e digital que se traduzirá
num novo desenho do panorama mundial, pela implementação de um novo sistema de conceção,
produção, difusão e receção da comunicação radiofónica.”
Mais recentemente, em 2018, num trabalho centrado na Rádio
Fundação de Guimarães, Ana Isabel Araújo, chegava à conclusão de que o
aparecimento da internet não reconfigurou a relação entre a rádio e ouvintes.
“O fraco investimento que a Fundação fez nas suas plataformas digitais,
como as redes sociais ou o site, foi bastante percetível através da análise
realizada aos mesmos, bem como nas entrevistas e observação direta. Significa
que a emissora ainda não reconheceu verdadeiramente a importância do online e
prefere continuar a utilizá-lo apenas como um complemento”.
As experiências vão-se sucedendo numa variedade desafiante da
imaginação dos radialistas. Um vetor parece ter o caráter determinante do que é
indispensável: a voz.
Uma das minhas melhores alunas, hoje doutorada, a Nair Moreira
da Silva[1], expressava com clareza
uma evidência que devia ser óbvia no ambiente rádio:
“A voz humana continua a ser o único laço afetivo,
numa rádio que encerra um modelo demasiado concentrado em playlists, sem
explicações e sem intimidade, ao admitir uma nova conceção estética que
desenvolva uma cumplicidade que estimule a criação e participação e envolva
sensorialmente o ouvinte e com ele crie um vínculo intenso e duradouro. A
principal conclusão a tirar desta dissertação é que na Internet a rádio perde a
sua identidade, já que a sua especificidade é quase toda ela eliminada ao
apresentar-se em sites multimédia idênticos aos sites de milhares de outros
órgãos jornalísticos. A voz humana, quando é intimista, emerge desse cenário,
no entanto, como o elemento identitário radiofónico pode possibilitar à rádio
na web um reencontro parcial com essa sua identidade perdida.”
Por tudo isto, insisto: “Na rádio a voz é a matéria-prima
dos seus profissionais e o veículo facilitador da identificação da estação de
rádio”. Tanto nas ondas hertzianas como nos traços digitais.
“As vozes chamam a
atenção dos ouvintes, sinalizam as mudanças de assunto e a procedência das
notícias, informam sobre a identidade e o contexto.”
Continuo a entender que a voz é razão de ser da rádio. Por
isso há que tratá-la bem e ser exigente quanto à sua qualidade nos quatro
fatores: intensidade, volume, intervalo (pausas), ritmo.
Reflexões vertidas para aulas por
Rui de Melo
Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na
Universidad Pontificia de Salamanca e licenciado em Direito pela Universidade
Católica do Porto
Professor Associado, aposentado, da Universidade Fernando
Pessoa