Eu,
voz e a rádio
Eu(fonia),
voz e a rádio
Introdução
Aos cinco anos, o meu pai pegou em mim e
pôs-me em cima de uma cadeira para poder chegar ao microfone, na cabine do
Portuense Rádio Clube. Fazia o papel de um menino mordido por um cão raivoso,
mas salvo pela vacina inventada por Pasteur. Corria o ano de 1947 e a avenida
Rodrigues de Freitas funcionava como uma espécie de placa giratória para fazer
rádio. Ao virar da esquina, na Duque Loulé, estava o Rádio Clube do Norte que
de clube só tinha o nome. Depois, chegava-se à Praça da Batalha. Em Santa
Catarina, depois da Rua Firmeza, ficava o Electro-Mecânico. Se descêssemos
Santo António, subíamos os Clérigos e estávamos na Rádio Porto. Subindo mais um
pouco era a Praça Carlos Alberto que dava acesso a Cedofeita onde estava a
ORSEC. Na Alferes Malheiro fica a Ideal Rádio. Cada uma destas rádios tinha os
seus estúdios e com personalidades que faziam questão de se afirmar como
mentores das suas rádios. Todos se conheciam e todos rivalizavam com aspetos
específicos das suas programações. Menino não impressionável pelos microfones,
era solicitado a participar em peças de teatro radiofónico, fazendo sempre
papéis infantis.
As vozes da rádio também cantavam. O
Fernando Rocha cantava Charles Trenet, Júlio Guimarães, notabilizava-se no
tango, lembrando Carlos Gardel, Ferreira
da Cunha com os boleros
e, para ficar por aqui, o Fernando Tavares era o Tino Rossi português. Os
programas ao vivo faziam parte da programação da rádio dos anos 40. O meu pai,
Benjamim de Melo, estava sempre ligado às respetivas produções e apresentação
dos artistas participantes. Eram espetáculos que não só ocorriam nas
instalações das estações, mas se repartiam por salas de espetáculos, espaços ao
ar livre como as Caldas de Vizela, o Parque das Camélias ou o Palácio de
Cristal, por exemplo.
A introdução do meio nas residências impulsionou
a indústria cultural, ligada à programação e ao mundo artístico, e a indústria
do desenvolvimento de tecnologia de rádio, com inúmeras melhorias técnicas.
Também abriu as portas para um universo relativamente novo (que se desenvolveu
lentamente na imprensa escrita): a indústria da publicidade não apenas a que
estava limitada ao próprio ambiente, mas também a referente a toda uma gama de
bens de consumo que mudariam os costumes e os modos de vida diários como os
dentífricos, os detergentes, os frigoríficos, os fogões elétricos ou os ferros
de engomar. Eram muitas novidades que penetravam nos hábitos de vida da
sociedade da época.
Quando cheguei aos treze anos, a voz
começou a engrossar, o teatro radiofónico ia sofrendo a concorrência
folhetinesca do “Teatro Tide” e ia rareando nas rádios da minha cidade. O meu
pai tinha optado por deixar a rádio e abraçar a publicidade. Enfim, julgava ter
acabado a minha passagem pela rádio. Mas, bem dentro de mim, embora dissesse à
minha mãe que queria estudar direito, o meu desejo era fazer rádio. E o caminho
foi-se fazendo caminhando. A Só-Rádio, agéncia de publicidade, tinha, em 1955,
ficado com a concessão de publicidade do S. João das Fontaínhas. Aí começava a
minha vida de locutor. Não considero que tenha sido um início profissional,
embora tenha sido remunerado.
Entretanto, o Portuense Rádio Clube
suspendeu as emissões para nunca mais as retomar, era a estação CSB6. As outras
rádios do Porto juntaram-se nos Emissores do Norte Reunidos. O emissor
situava-se em Canidelo e foi adquirido um modelo Collins de 10 KW, uma
maravilha naquela época. Os estúdios concentraram-se num edifício da Rua D.
João IV e distribuía-se por três pisos com um estúdio de emissão e dois para
gravações. Foi adquirido material da melhor qualidade.
Passei pela instalação sonora do Teatro
Sá da Bandeira, onde lia publicidade nos intervalos das peças de teatro, por
outras instalações sonoras e fiz duas Voltas a Portugal, integrando a caravana
publicitária. Aí conheci Aurélio Carlos Moreira que me integrou no Passatempo
para Jovens, programa de rádio começado nos Associados de Lisboa e integrando
posteriormente a programação da Renascença. Voltava a aproximar da rádio a
minha relação com o microfone. Era o tempo do rock com Elvis Presley, Paul Anka
ou Pat Boone. Os jovens repartiram as suas preferências por estes três rockers
com concursos de popularidade promovidos pelo Aurélio nos seus programas.
O meu avô, Mário de Mello, que
trabalhava nos Emissores do Norte Reunidos, deu-me a novidade que a Rádio Porto
ia promover um concurso para locutores e era uma boa oportunidade para mim. Fiquei
em primeiro lugar e, em 1 de outubro de 1960, iniciava, com 17 anos, a minha
carreira profissional como locutor. Com trabalho três dias por semana auferia o
vencimento de 600 escudos (ou seja, 3 euros). O meu avô, que trabalhava todos
os dias, ganhava 1.500 escudos (7 euros e meio). O meu pai, que se dizia ter um
excelente ordenado, vencia 3 mil escudos (15 euros) mais 100 escudos por dia
para despesas de representação sempre que andava em viagem de trabalho. Para
possibilitar uma comparação, o preço da gasolina era 5 escudos por litro (2,5
cêntimos de euro). Uma vez que hoje, o mesmo produto ronda os 1,6 euros,
fazendo as contas, conclui-se, de forma muito simplista que o custo de vida
cresceu 64 vezes. O que quer dizer que ganhava o equivalente a quase 200€. Dava
para pagar as propinas, comprar os livros, vestir, calçar, ir ao cinema e
começar a pôr qualquer coisa de parte para quando fosse para a tropa. Pouca ambição,
mas correspondente à realidade vivida. Meses depois alarguei a minha atividade
a outras estações radiofónicas até que surgiu, em finais de 1961, a
possibilidade de concorrer ao Rádio Clube Português, há três anos instalado no
Porto. Era uma referência nova e de grande prestígio. O emissor de 100 KW,
implantado em Miramar, cobria todo o país. Os estúdios ocupavam um 6º andar na
Rua de Ceuta. Sonho de qualquer profissional da cidade não admira que o
concurso tivesse sido duríssimo e muito disputado. Fiquei em primeiro lugar,
entrei em janeiro de 1962 para os quadros do Rádio Clube Português. A partir
daqui, acreditei que nunca mais podia parar com a consciência de que nunca
podia abrandar os esforços de estudo, de alargar o conhecimento, de autocrítica.
E agora a rádio vê-se ultrapassada pelo
espetáculo e pelas ofertas televisivas. A televisão ganha terreno, não só do
espetáculo, mas mesmo da informação dos grandes factos. A rádio contenta-se em
ser a primeira, mas é superada pela imprensa no aprofundamento e é superada
pela televisão no espetáculo.
A rádio está submetida a tensões novas.
Entra em competição com a televisão e com a Internet que por sua vez se integra
nos novos consórcios para desenvolver novas estratégias empresariais. A rádio
cada vez mais deixa de ser um meio isolado, gerido por uma empresa e passa a
integrar-se num conjunto amplo de meios geridos por uma empresa ou por um consórcio
de empresas nacionais e internacionais. A rádio perde autonomia e integra-se em
sistemas empresariais e de ofertas de conteúdos multimédia.
Conteúdos diferenciados e atrativos.
Enquanto a situação se mantém sem avanços, indo pouco além da experimentação.
Tudo isto é recente. Há já algumas ofertas concretas, outras em fase de
experimentação e outras em simples projetos.
Isto é, encontramo-nos em plena
evolução. Há que esperar desenvolvimentos específicos, que se consolidem e os
rumos que cada modalidade comunicativa adote.
Neste ambiente, a rádio ocupa um lugar
privilegiado para se manter de maneira competitiva e de serviço à sociedade.
Continua a ser o meio mais implantado nas sociedades desenvolvidas e
subdesenvolvidas, o de maior penetração mundial. É um meio de baixo custo na
rede técnica, na produção e na difusão. E, sobretudo, continua a ser o meio
gratuito para chegar a todos.
Os movimentos de rádios livres e
comunitárias da década de sessenta (em Portugal nos anos 80) puseram o acento
na conceção plena da rádio como «meio pobre» e fragmentado: era preferível
dispor de 30 emissoras de 10 Kw a uma só de 100 kw.
A produção é de custo sumamente
flexível. Pode ir desde os baixíssimos custos das rádios comunitárias e de
intercomunicação social, de participação de cidadania até aos elevados custos
das rádios fortemente competitivas com coberturas de grandes acontecimentos
nacionais e internacionais, subscritos em grandes agencias e com diversidade de
correspondentes internacionais.
Não são precisas conexões, nem
equipamentos de alto custo. Pode ser ouvida nos telemóveis (dispensando os ultrapassados
recetores a pilhas) que são acessíveis a todos os públicos. O seu ponto forte
continua a estar no acompanhamento do homem itinerante em automóvel ou
transporte público. É um equipamento de bolso que com uns simples auriculares
pode seguir-se em qualquer situação.
Tal flexibilidade encontra-se também nos
conteúdos. A rádio foi usada nas ditaduras para fins propagandísticos e de
submissão aos controles e ideias políticas, mas também serviu como impulso para
a libertação dos povos, como ponto de convocatória para a revolução. Usa-se com
objetivos comerciais, de negócio e também com fins de serviço social, educativo
e cultural. Incorpora a reportagem em direto ou elaborada em diferido e o
entretenimento musical e de concursos. A história demonstrou que não há limite
algum para os conteúdos mas tendências e relevância de uns sobre outros segundo
cada época e cada país.
A rádio nasceu como emissora de
cobertura reduzida que, se quis crescer empresarialmente se foi organizando em
cadeias. Este tem sido o desenvolvimento tradicional.
Vislumbra-se uma rádio em que, por um
lado, se incrementam as transformações da rádio tradicional: inovação
tecnológica, reorganização empresarial permanente, concentração dos canais
generalistas nos mesmos temas e nas mesmas franjas horárias juntamente com o
incremento, embora lento, da especialização e, por outro, assiste-se à presença
de modalidades totalmente novas: rádio digital terrestre, rádio por Internet,
rádio por satélite, rádio integrada nas ofertas das plataformas de comunicações,
formas alternativas à rádio de consumo de música mediante os reprodutores de
bolso, audições e venda de álbuns ou de canções pela Internet.
A rádio está envolvida em novos
processos. Por um lado, sofre uma enorme transformação interna e, por outro,
liga-se aos processos técnicos e comunicativos gerais e globais. Pela primeira
mutação, a rádio renova a sua capacidade de produção, amplia a sua ação
difusora das transmissões analógicas às digitais nos três sistemas de difusão e
gera novas maneiras de receber os seus conteúdos pelas audiências. Pela segunda
mutação, a rádio aparece simultaneamente noutras ofertas como na Internet, no
telefone móvel de terceira geração e integra-se em pacotes de conteúdos
juntamente com a televisão, telefone, Internet e bancos de dados em plataformas
de comunicações.
A rádio digital requer novos recetores.
Por um lado, recetores específicos e, por outro, emergem recetores integrados
em terminais multimédia. Tanto uma solução como outra gera múltiplos problemas.
É precisamente o que está a atrasar o processo. Os fabricantes não
industrializam os equipamentos porque não há compradores; não há compradores
porque não há ofertas atrativas; não há ofertas porque as empresas não
descortinam o mercado.
Descobriu-se a interconexão para emitir
em cadeia. De facto, o que tem prevalecido na imensa maioria dos países é a
conceção da rádio em rede com algumas conexões ao longo do dia para as
coberturas regionais e locais; não obstante, sempre vão resistindo redutos de
emissoras isoladas para cobrir âmbitos locais ou prestar serviço a pequenos
grupos.
A rádio digital poderá alterar toda esta
situação. É uma rádio por blocos que liga até seis emissoras de cobertura
estatal simultânea nuns casos sem desconexões e noutros com desconexões. É
preciso esperar o desenvolvimento da rádio digital terrestre para ver o que
acontece nos âmbitos de cobertura e funcionamento exclusivamente locais. Em
Portugal, o processo está encerrado; fecharam os emissores digitais.
A rádio do futuro, por mais inovações
técnicas que introduza, vai continuar a assentar na comunicação oral com a
audiência, na magia da palavra, da música, dos sons de ambiente, do silêncio. É
o contacto humano através dos sons para combater a solidão, para acompanhar,
para informar, para entreter e, em suma, para ir mantendo o ser humano ligado
ao elemento primeiro e de maior riqueza ao longo da sua história como é a
tradição mediante a comunicação oral; a rádio transformou-se na amplificadora
de tal tradição e na adaptação às novas situações e necessidades.
A rádio vai continuar a ser o grande
meio da informação para os assuntos imprevistos, cataclismos, eventos
desportivos, espetáculos musicais, contacto com o homem comum, com a vida
quotidiana das pessoas como companhia e como transmissão de conhecimentos.
Trabalhei na rádio até 1996 e no ensino
secundário e superior (sempre ligado à comunicação social, desde 1978,
intermitentemente até 1996). A partir de novembro deste ano até outubro de 2013,
lecionei na Universidade Fernando Pessoa.
Pelo caminho houve passagens pela
imprensa e pela televisão. Em 1986, licenciei-me em Direito na Universidade
Católica do Porto. Quando me fui candidatar, em 1997, ao doutoramento em Periodismo
y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca, a
professora doutora Maria Rosa Pinto Lobo, diretora do curso, pediu o meu curriculum.
Ao lê-lo, não hesitou em admitir-me de imediato. Em 2000 tornava-me doutor em
Periodismo y Ciencias de la Información.
“A rádio na sociedade da informação” foi o
livro que publiquei como resultado da tese por mim defendida. Regularmente
tenho sido desafiado a escrever mais livros sobre temas relacionados com a
rádio. Fiquei pelos artigos científicos e pelas participações em Congressos,
seminários, conferências e workshops. O meu amigo e velho companheiro de lides
jornalísticas e docentes, Joaquim Fernandes, cada vez que nos encontramos,
alerta-me para a “obrigação” de eu partilhar a minha experiência em obras
disponíveis para todos. Em colegas professores, em antigos alunos a “exigência”
tem-se mantido ao longo dos anos. Na família também, sobretudo o meu irmão
Jorge de Melo, também ele doutor em ciências da comunicação.
Vou então submeter-me a esse “exame”.
Esta a razão de “Eu, voz e a rádio”. É também um desafio que lanço a profissionais e outros estudiosos, para
que discutam o tema, para que alarguem a sua investigação, enfim, para que
completem esta obra necessariamente inacabada..
Rui de Melo
Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca
e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto