Eufonia ou a harmonia das vozes na Rádio e na Televisão

Eufonia ou a harmonia das vozes na Rádio e na Televisão

Em 17/18 março 2005 participei no IV Congresso Luso-Galego de Estudos Jornalísticos e no II Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos

Convidado a apresentar uma comunicação, escolhi “Eufonia ou a harmonia das vozes na Rádio e na Televisão”

É esse trabalho que reconstruo.

A reflexão que aqui se deixa é fruto de dezenas de anos de prática e da observação que se tem feito ouvindo a rádio e a televisão que se fazem em Portugal. É preocupante a leviandade com que a língua é tratada na sua expressão oral por quem serve, apesar de tudo, de referente a uma população que, fundamentalmente, ouve e vê informação mediática (e raramente lê). Rádios e televisões de dimensão nacional descuidam-se na utilização da voz, da fala, da fonética e, por arrastamento, comprometem a credibilidade do emissor. Quem acredita em alguém que, quando quer informar, hesita, tropeça, mastiga, empastela aquilo que está a dizer? Não será esse conjunto de “hums”, “mnhes”, “ããããs” uma fonte incomodativa de ruído, fruto de quem não está convencido do que informa, resultado expressivo de quem está inseguro? É uma espécie de moda que só pode ter sido lançada por quem não gosta de rádio e quer dela afastar tudo o que seja ouvinte.



Assim, esta reflexão tem por objetivo ponderar os diversos aspetos em que a comunidade académica interessada nas Ciências da Comunicação pode dar o seu contributo de forma a exigir-se que prepondere a eufonia sempre que haja comunicação para públicos mais ou menos vastos.

Podemos definir eufonia como uma emissão verbal harmoniosa e agradável ao ouvido. Do grego eu, bem ou bom, e fonos, som, voz. À eufonia opõe-se a cacofonia (do grego cacos, mau, feio, defeituoso, e fonos, som, voz). Eufonia é também um efeito rítmico e harmónico agradável produzido pelas sequências fónicas de um sintagma, de uma microestrutura textual. Eufonia significa, assim, som agradável, escolha harmoniosa dos sons, suavidade de pronúncia. Efetivamente, o que se diz na rádio ou na televisão deve soar bem, além do comunicador o dizer bem.

A eufonia (a harmonia, a agradabilidade) deve ser, pois, uma finalidade do som em geral e da rádio e da televisão muito em particular, já que marca uma relação que, para o ser, tem de constar de satisfação mútua, dotar o ouvinte/espectador do sentido da fruição, para que se sinta bem com o meio de comunicação. A rádio e a televisão têm de assumir em todos os momentos que a voz, acima de todos os outros elementos (música, efeitos, silêncios, imagem ou dados), é a garantia sonora da compreensão mútua e do entendimento com os ouvintes/espectadores.

A propósito da questão da linguagem radiofónica, por exemplo, considerando a rádio como meio de difusão, comunicação e expressão, implica que se privilegie a expressividade e o papel a desempenhar pela palavra mediada pela voz, pela música, pelos efeitos sonoros e pelos silêncios. Pegando no conceito de eufonia, ligado à agradabilidade do som da voz, alarga-se à harmonia que deve enformar a expressividade radiofónica. As potencialidades abertas pela digitalização apresentam-nos a rádio e a televisão como multimédias, o que levanta a questão dos conteúdos que, cada vez mais, pedem ao comunicador de rádio ou de televisão um permanente exercício da criatividade e alargada pela vertente interativa.


Entre 1968 e 1975, no Rádio Clube Português, realizei e apresentei o programa "Norte Dia a Dia" onde experimentei, com sucesso, um noticiário regional escrito para ser lido com o balanço e o ritmo de uma música de jazz de características eletro-acústicas. Resultou de um trabalho conjunto de Gonçalo Nuno Faria, Rui Lima Jorge e eu próprio. Normalmente o texto era do Gonçalo e eu ou o Lima Jorge procedíamos à leitura e respetiva sonorização. Estava encontrada uma fórmula que resultava em pleno, dotando a rádio que se fazia de uma expressividade cativante. Quando, anos mais tarde, o Gonçalo tentou repetir a fórmula na RDP, não encontrou nem vozes nem sensibilidades artísticas que fizessem com que o processo resultasse. E aquilo que, anos antes, tinha sido um sucesso, revelou-se, com outras vozes, um autêntico fracasso. A diferença não estava na palavra escrita, mas na falada e na ausência de sentido de eufonia de outros profissionais. O título do espaço noticioso era o mesmo, "Norte em Notícia", o autor do texto continuava a ser o Gonçalo Nuno Faria, mas eram outros os responsáveis pela expressividade radiofónica (ou sua ausência, para ser mais correto).

Pude aqui descobrir duas das funções da linguagem de que fala Jackobson. A função fática ao procurar estabelecer e manter a atenção do ouvinte, em que o prazer de comunicar quer dos criadores (emissor) quer do ouvinte (recetor) estabelece uma comunhão de interesse e atenção partilhados. A função metalinguística, do código, em que os criativos numa linguagem radiofónica, por certo arbitrária, mas que se afirmou naquele específico contexto social. Aliás, a necessidade de passar informação que apelasse à inteligência para uma descodificação do sentido verdadeiro, era um recurso utilizado com frequência para iludir a censura.

O profissional de rádio tem de ter presente que é pela voz e pelo ouvido que o homem adquire o seu estatuto de sujeito. Ouvir alguém na rádio é ouvir a sua voz e, cada vez que o ouvinte concentra a sua atenção na escuta, deixa ecoar dentro de si a fala do outro. É pela voz que o ouvinte vai descobrir o "não dito", o sentido profundo da mensagem. Se o profissional não tem consciência disto, as suas palavras ficam vazias. Ao abdicar da coloquialidade está a colocar o ouvinte à distância. Não comunica com ele. O afeto deve passar através da fala num esforço permanente do profissional da rádio fazer sentir ao ouvinte de que está com ele e que partilha um código de compreensão, ou seja, de comunicação.

"A voz permite que a linguagem fique retida no corpo do sujeito sem se alienar: inversamente, garante à linguagem o seu peso como matéria, sem o qual se converteria apenas em código vazio". Isto leva-me a deduzir, sem dificuldade, que a eufonia, a harmonia, a agradabilidade deve ser uma finalidade do som em geral e da rádio muito em particular, já que marca uma relação que, para o ser, tem de constar de satisfação mútua, dotar o ouvinte do sentido da fruição, para que se sinta bem com a rádio.

 


"Al margen de que la palabra que se difunde sea improvisada o leída, escrita por uno mismo o por otro, de carácter sugestivo o meramente informativo, el primer contacto sensitivo del oyente con el emisor es la voz. Ella es la que identifica y sitúa  psicológicamente al hablante en la mente de quienes se encuentran al outro lado del recetor" (Muñoz y Gil, 1986: 53)

 

Aqui têm influência três fatores fundamentais: a vocalização, a entoação e o ritmo. Quanto à vocalização, basta referir que uma pronúncia deficiente dos fonemas tem como consequência imediata a perda da clareza da mensagem.

A entoação diz respeito ao facto de a linguagem oral incorporar uma musicalidade que, através do timbre, do tom e da intensidade da voz (convenientemente modulada) transporta maior carga semântica e possibilidades expressivas mais ricas. Conforme Rodríguez (1998: 85), reconhece-se que o timbre é uma sensação auditiva complexa que nos possibilita perceber a estrutura acústica interna dos sons compostos e que é independente da duração, do tom e da intensidade, sendo-lhes, contudo, simultânea.

 

"Intensidad o propiedad por la que un sonido es más o menos fuerte.(.../...) Tono o propiedad por la que un sonido es más o menos gráve o agudo. (.../...) Duración o persistencia durante un tiempo. Es la velocidade com que aparece el sonido: rápido, lento" (Cebrián,1995: 359)

 

A propósito da entoação, Balsebre fala da melodia da palavra, componente desprezada com frequência desmesurada na rádio que se ouve. Para ele, a expressão musical da palavra radiofónica e a sua significação linguística são definidas conjuntamente pela melodia ou pela entoação. Na expressão de Constantin Stanislavski (citado em Balsebre, 1996: 57):

 

“El subtexto es un tejido de esquemas innumerables y diversos dentro de la obra y del personaje, hecho de "síes mágicos", cir¬cunstancias dadas, todo tipo de ficiones de la imaginación, movi¬mientos internos, objetos de atención, verdades pequeñas y gran¬des y la creencia en ellas, adaptaciones, ajustes y otros elementos similares. Es el subtexto lo que nos hace decir las palabras que de¬cimos en una obra»”.

 

No que diz respeito ao ritmo, devemos ter em conta que varia em cada tipo de mensagem ou, inclusivamente, ao longo da mesma mensagem. Não deve ser demasiado apressado nem exageradamente lento. O primeiro pode “cansar” o ouvinte e o segundo pode aborrecê-lo. Em qualquer dos casos ele “desliga” do que está a ser dito e até pode "ligar" para outra emissora.

 


"En un sentido más subjetivo, entendiendo el proceso de percepción ¬radiofónica como una aprehensión de formas sonoras ininterrumpidas ¬en una secuencia, y como percepción de una periodicidad previsible (…/…), ritmo es la periodicidad percibida, la dimensión que fija la naturaleza de la periodicidad percibida, la proporción en que son percibidas las distintas secuencias sonoras" (Balsebre, 1996: 69)

 

A rádio, tenho-o dito com frequência aos meus alunos, é o meio mais motivador de imaginação no contexto mediático. A experiência mostrou-me isso inúmeras vezes. Cito o exemplo de um colega de profissão que era dotado de uma voz jovial e de grande expressividade. Estávamos no início dos anos 70 e os estúdios do Rádio Clube Português, no Porto, ficavam perto de uma escola secundária feminina. Umas quantas alunas pediram autorização para visitar os estúdios e disseram que gostariam de conhecer o locutor tal. Lá veio o meu colega, careca, gordo, baixinho. Desilusão completa para as meninas cuja imaginação tinha colocado aquela voz num corpo muito mais interessante e sedutor. O cumprimento foi cerimonioso e, no fim de contas, a visita aos estúdios não passou do hall de entrada porque, estava visto, o que as meninas queriam era conhecer de perto o seu “ídolo”. Só que ele estava nos antípodas daquilo que imaginaram e a debandada foi imediata. Para desgosto do meu colega...

Guy Rossolato (citado por Castarède, 1991:161) identificava na voz uma origem corporal, orgânica e de excitação, e considerava-a uma força, um campo, um objetivo, de prazer, ligado a uma tensão que é preciso reduzir, um objeto, para atingir um recetor, assegurar uma comunicação. “Pode-se considerar a voz, e, por conseguinte, a música, como uma metáfora do impulso em geral - o impulso sem outro representante a não ser a própria música”.

Este impulso de afeto e até de representação (não só através da música, mas também dos efeitos e do silêncio) compõe a expressividade harmónica estruturada e estruturante, dotando de sentido a mensagem apelativa da imaginação do ouvinte que a completa. O que leva Balsebre (Ibd. 41) a dizer que

 

"El tratamiento musical de la voz, sin perjuicio para la significación semántica (inteligibilidad del texto en un contexto comunicativo), há de estar presente también en la connotación estética de la palabra radiofónica. En la radio, la componente estética del mensaje radiofónico transciende el significado puramente lingüistico de la palabra. De outra manera, será muy difícil aceptar la importancia de dimensiones acústicas, como la intensidad, el tono, el timbre o el ritmo en la codificación de la palabra radiofónica".

 

A rádio digital vem colocar todas estas exigências em relação à palavra radiofónica como condição sine qua non para o comunicador avançar com novas propostas de composição harmónica dotada de sentido estético, envolvendo agora uma específica qualidade sonora e a particularidade de lidar com outros elementos representativos traduzidos em dados (que podem representar, sons, textos, imagens ou gráficos).


A receção das mensagens radiodifundidas

Os quatro tipos clássicos de receção das mensagens radiofónicas foram explicados por Abraham Moles (citado por Ortriwano, 1985: 82):

 

"a) ambiental: quando o ouvinte deseja que a rádio lhe propor¬cione um "pano de fundo", seja através de música ou de palavras;

b) companhia: o ouvinte presta uma atenção marginal interrompida pelo desenvolvimento de alguma atividade paralela;

c) atenção concentrada: supõe que o ouvinte, mesmo exercendo outras atividades paralelas, aumenta o volume do recetor, concentrando a atenção na mensagem que lhe interessa;

d) seleção intencional: é a seleção de um programa concreto por parte do ouvinte".

 

Considerando que a enunciação discursiva na rádio é de base verbal, a voz é o elemento principal da expressividade radiofónica. Num meio desprovido de imagem visual, a voz adquire mais importância do que no teatro, no cinema ou na televisão.

Por definição, eufonia significa som agradável, escolha harmoniosa dos sons, suavidade de pronúncia. Efetivamente, o que se diz na rádio deve soar bem, além do comunicador o dizer bem. Copeau (citado por Merayo, 1992: 296) dizia:

 

“Será necessário que as vozes sejam bonitas. Será necessário que sejam simpáticas. Será necessário que sejam diversas em maturidade. Será necessário que estejam organizadas. Será necessário que sejam capazes de todos os tons, do mais ligeiro murmúrio à declamação mais ampla e sustentada, até ao canto”.

 

Tais exigências, imprescindíveis nos programas de criação, são também, prudentemente, aplicáveis à informação. A alternância de vozes de timbres diferentes e tom agradável melhora a apresentação das notícias, torna os noticiários mais dinâmicos e, portanto, mais “fáceis” de ouvir.

A eufonia tem muito a ver com uma locução adequada e também com a combinação harmónica da palavra com os outros elementos sonoros. Embora de forma muito limitada, já é possível ouvir efeitos sonoros e até musicais, a enquadrarem as notícias, servindo de cortina separadora de temas. Mas, em tempos, o Rádio Clube Português chegou a utilizar efeitos sonoros a separar cada notícia, fazendo para o ouvido aquilo que o ponto e parágrafo fazem na escrita. Sabia o ouvinte que tinha acabado uma notícia e ia começar outra.

Se ao caráter expressivo da voz humana lhe acrescentarmos efeitos e cortinas musicais, como timidamente alguns vão fazendo, a informação radiofónica identifica-se mais com o meio que vive exclusivamente do som, adquire mais vivacidade e resulta num verdadeiro espetáculo para o ouvido que se espera que a rádio seja. Tudo isto no pressuposto estético e deontológico de não cair no ridículo e dispersar a atenção do que verdadeiramente é importante - a notícia. A combinação dos recursos sonoros que integram a mensagem radiofónica, deve não só adequar-se à ética profissional como perseguir o sentido estético de uma verdadeira harmonia acústica.

O princípio essencial assenta no facto de os espaços de emissão deverem constituir um conjunto harmónico com o todo da programação em que estão inseridos. Esta harmonia, ambientação eufónica por extensão, exige que a todo o momento, os diferentes elementos da mensagem radiofónica (palavras, música, efeitos ou silêncios) se ajustem esteticamente, sem que transpareçam combinações bruscas, desordenadas ou cacofónicas.

O nosso ouvido, perante uma simultaneidade acústica, pode combinar vários sons, percebê-los todos juntos e selecionar os que mais lhe interessem, subalternizando ou desprezando todos os outros. Após a seleção, estão criadas condições para corresponder à atenção dirigida e concentrar-se no que lhe interessa. Também acontece que o nosso ouvido está condicionado por um determinado ritmo à sucessão de sons que lhe apresentam. Assim, o ritmo musical ou o ritmo da linguagem falada repercutem-se na audição e correspondente compreensão das mensagens.

A saúde da voz

Depois do que se disse sublinhe-se que as características da voz falada exigem que a respiração seja natural. Assim, o ciclo completo de respiração varia de acordo com a emoção e o comprimento das frases e a velocidade de fala, o que implica uma inspiração relativamente lenta e nasal nas pausas longas, sendo mais rápida e bucal durante a fala, com uma pequena movimentação pulmonar e da expansão da caixa torácica. Estamos aqui no domínio da coordenação pneumofonoarticulatória.

O objetivo da voz falada é, então, a transmissão da mensagem, com articulação precisa mantendo a identidade dos sons. Vogais e consoantes com duração definida pela língua que se fala. O padrão de articulação sofre grande influência dos aspetos emocionais do falante e do discurso. Fala aparece espontânea e articulada.

Em nenhum lado se aprende a falar com hesitações, com ruídos, com tropeções. Então onde é que alguns dos nossos profissionais da rádio e da televisão, nomeadamente jornalistas, vão buscar as bases para falar tão deficientemente?

Há tantos e tão divertidos exercícios para fazer. Há tantos aspetos a cuidar na nossa voz. São enormes as vantagens que obtemos conhecendo coisas elementares que os profissionais da saúde nem acreditam que os comunicadores tudo façam para menosprezar o seu instrumento de trabalho: a voz.

Daí que seria interessante motivar os comunicadores, professores incluídos, a terem conhecimentos de fisiologia (mecanismos e funções) da voz e cuidados com o aparelho fonador, a evitar o abuso e o mau uso da voz no trabalho e, principalmente, nas atividades extra profissionais. Evitar condições adversas: ambiente refrigerado, poeiras, acústica inadequada, pressões psicológicas, falta de hidratação adequada, falar fora de seu registo vocal, dinâmica corporal inadequada, hábitos alimentares inadequados, consumo de tabaco, álcool, e por aí fora.


Conclusão

A formação do ouvinte/espectador, na minha compreensão, passa pela formação da sua cidadania. Esse é o compromisso de quem é comunicador profissional.

Os cidadãos têm uma forte componente de formação na medida em que os profissionais dos media estimulem o seu gosto pela informação e lhes proporcionem estratégias de conhecimento que lhes possibilitem a fruição máxima dos sentidos textuais. Daí, então, as duas condições necessárias para a formação do ouvinte/espectador/leitor: ter o prazer de ouvir par depois poder contar.

A primeira condição não se circunscreve, é claro, apenas ao prazer estético ou ao lazer, mas inscreve-se no atendimento das mais diversas necessidades de informação do cidadão; a segunda, por sua vez, não é exclusiva dos media nem das salas de aulas.

Os media e os jornalistas não são os únicos responsáveis pela formação do cidadão: a família, a escola e a sociedade, conforme os desenvolvimentos que a agenda setting tem evidenciado, são corresponsáveis no processo formativo fundamental. Porque uma criança recebe as influências da família, por cujas figuras parentais modela a sua personalidade. Para ela, o ato de ler, por exemplo, não pode pertencer apenas ao universo escolar. Assim, o indivíduo que vive em sociedade se quer participar com consciência no processo de decisão tem de se informar.

É preciso, então, termos a clara noção da partilha dessa responsabilidade de formação/informação a fim de não remeter para o jornalista (apenas) ou a escola (somente) ou a família (unicamente) ou a sociedade (exclusivamente) a sensação de fracasso e o complexo de culpa pelo défice de cidadania. O problema que aqui se colocou está antes de tudo isso. Localiza-se em razões tão elementares como o saber escrever e saber falar para poder veicular informações. Ora se nós que “O Papa foi internado com um problema cardio-respiratório” porque é que o jornalista de rádio ou de televisão há-se dizer:

 “a mmmmm o Papa aaaa foi internado mnhhhhh, com um problema a cárdio-respiratório”?

Quem leva a sério uma leitura nestes termos? Onde está a credibilidade de quem assim nos fala?

Da forma como raciocinei acima, posso ter dado a entender que todos os jornalistas optaram, a partir dos anos 90, pela “mastigação” dos textos objetos das suas leituras/notícia; não é, de forma alguma, tanto assim: o que tentei foi apontar muito sumariamente a situação que se vive em alguma da nossa comunicação mediática audiovisual.




BIBLIOGRAFIA

BALSEBRE, Armand, 1996, El lenguage radiofónico, ed. Catedra, Madrid.

CASTARÈDE, Marie-France, 1991, A voz e os seus sortilégios, Caminho, Lisboa.

CEBRIÁN HERREROS, M., Mariano, 1995, Información audiovisual, Sintesis, Madrid.

MERAYO, Arturo, 1992, Para Entender La Radio, Upsa, Salamanca.

MELO, R. de, 2001, A Rádio na Sociedade da Informação, Ed. UFP, Porto.

MUÑOZ e GIL, José Javier e César, 1986, La Radio Teoria y Práctica, IORTV, Madrid.

ORTRIWANO, Gisela Swetlana, 1985, A informação no rádio, Summus Ed. - S. Paulo.

RODRÍGUEZ, Ángel, 1998, La dimensión sonora del lenguaje audiovisual, ed. Paidós, Barcelona.

 

Rui de Melo

 Professor Associado, aposentado, da Universidade Fernando Pessoa

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca

e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

IV Congresso Luso-Galego de Estudos Jornalísticos

II Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos

17/18 MARÇO 2005

 

 

 

 

 

 

 

 A rádio, as pessoas e as suas coisinhas



A rádio tem a sorte de ter um estudioso como o professor Rogério Santos. Entre várias obras publicadas, artigos e comunicações diversas, tem HISTÓRIA DA RÁDIO EM PORTUGAL, em https://radio.hypotheses.org/.

Aconselho, a quem gosta de rádio, a passar pelo site. Lá se conta muita coisa interessante. Deparei-me com a “Micas Eletromecânica”, figura que conheci pessoalmente e cuja fama gerava invejas e maledicência. O Professor Rogério Santos, com base numa carta depositada na Torre do Tombo, conta a história que aqui se reproduz.

Rogério Santos
Doctor of Philosophy

“Lover Come Back to Me foi traduzido por Amor Salta para as Minhas Costas. A Micas Eletromecânica não deixava por mãos alheias uma mais que boa tradução! O problema maior era quando dizia ládi em referência a uma senhora, pois havia sempre uns ouvidos sensíveis. Do relato sobre a intervenção da locutora, ficou ainda a resposta torta do dono da rádio. A Micas Eletromecânica gostava de ir para o estúdio de avental e de chinelos, diziam os críticos. Ela era a verdadeira super-mulher, dividida entre dona de casa e radialista. Isto tudo se passaria no já longínquo novembro de 1945. De todos os modos, simpatizo com a tradução. Andar às costas de alguém é tão polissémico e a permitir diversas interpretações para um psicanalista.”

O Electro-Mecânico ficava na rua de Santa Catarina, por cima da confeitaria Atlântida. Lembro-me do cheiro a bolos que pairava naquele primeiro andar onde conheci a Liliana de Abreu, a Maria do Carmo, o Álvaro Pacheco e o Alfredo Alvela, mais tarde, meus colegas no Rádio Clube Português. Júlio Guimarães, Fernando Gonçalves, António Batista, Henrique Geração, Aníbal Barroso frequentavam, mais ou menos assiduamente, os estúdios sempre em renovação.  Manuel Moreira foi dos primeiros a comprar equipamento Ampex, de qualidade top em material de gravação de som.

Por tudo isto estou à vontade para dizer que a senhora em questão tinha cultura suficiente para não cometer um erro tão crasso. A mesma história foi-me contada em Lisboa, pessoalizando-a também numa voz feminina. A cultura “marialva” aproveitava tudo para subalternizar o papel da mulher na sociedade.

Como esta, há muitas histórias, mais ou menos anedóticas, como a do locutor que se despiu na cabine enquanto fazia a emissão, na jornalista que falava do rio Cavado, em vez de Cávado, ou da que esmiuçava o mapa de África para descobrir onde ficava o apartheid.

A resposta de Rogério Santos não tardou.

Caro Rui de Melo, caro amigo. Eu procuro nunca especular sobre um assunto de História. A minha fonte é uma carta depositada na Torre do Tombo, datada e assinada. Logo, não deve (pode) ser ignorada. A hipótese mais extrema de erro por parte de quem escreveu seria a de uma calúnia numa época de censura e maledicência, mas parece-me pouco provável. Os outros exemplos não os comento, por não possuir documentação adequada.

A maledicência era corriqueira em relação a quem fazia rádio, cantava, fazia teatro ou tinha um qualquer destaque público. Embora criança, acompanhei todo aquele ambiente feito de gente interessada, interessante, mas com alguma megalomania que, frequentemente, revelava uma ausência completa do sentido do ridículo.

A carta da Torre do Tombo é semelhante a tantas outras que aliviava as frustrações de certa gente. Umas vezes escondiam-se no anonimato e outras usavam nomes inventados. Era um fenómeno muito frequente.

Conhecedor dos cuidados criteriosos do Professor Rogério Santos, achei por bem dar-lhe o meu testemunho.

A Laura Moreira, por viver em união de facto com o proprietário Manuel Moreira, situação "escandalosa" para a época, era uma mulher de iniciativa, invejada e muito criticada. Dirigia peças de teatro, convidava autores, fazia adaptações de obras consagradas. Por lá vi gente dos "Modestos" e do "Experimental". Eu próprio fui dirigido por ela em papéis infantis de teatro radiofónico.

Quando o Electro-Mecânico deixou a Rua de Santa Catarina e se mudou para D. João IV, ela resolveu não acompanhar a mudança porque, julgo saber, não concordava com ela. E lá se recolheu na casa do Jardim de S. Lázaro onde morava.

Lembro-me da sua figura a um tempo bonacheirona, mas determinada na sua "autoridade". O pessoal que por lá passava tinha-lhe respeito.

Finalmente, quero expressar a minha admiração, o meu respeito e agradecimento pelo trabalho desenvolvido pelo Rogério. É um serviço público que não há dinheiro que pague. Um grande abraço do

Rui de Melo

Professor Associado, aposentado, da Universidade Fernando Pessoa

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca

e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

 

Um criativo singular num exercício ficcional de rádio


Reflexões vertidas para aulas por

Rui de Melo

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

Professor Associado, aposentado, da Universidade Fernando Pessoa

 


Tito Ballesteros López é colombiano e um comunicador social. Especialista em Gestão de Comunicação Organizacional. É produtor, pesquisador, coordenador e co-autor de diversos livros. Assina Cuadernos de radio que disponibiliza em https://drive.google.com/drive/folders/1wiyZ2w-dsUcLiam2PJ-u12Ioc9I_0xOB.

Faz parte da muita informação que recebo de todos os quadrantes, incluindo a América Latina onde há gente muito interessante no estudo e na investigação em rádio. Só muito recentemente comecei a ler trabalhos deste autor e acho que vale a pena partilhar com os meus seguidores um texto singularmente criativo embora, naturalmente, especulativo. Sempre entendi que a rádio implica criatividade, ser diferente e ter um estilo próprio. O texto de que, parcialmente, vos dou conta, denuncia o gosto que sempre tive em surpreender o ouvinte, em partilhar informação, em acrescentar qualidade de vida ao ouvinte. Nesta linha, tive sempre gente muito inovadora nos temas e respetiva abordagem como, entre muitos outros, foram os casos de Costa Carvalho e Joaquim Fernandes, com Extravagário, o Século XX e OVNIs. Criou-se, inovou-se, transmitiu-se conhecimento.

Sempre com os olhos e os ouvidos postos na realidade, trabalhou-se a ficção, desafiando o ouvinte a acompanhar a nossa imaginação.

Julgo que esta breve introdução explica a divulgação das ideias de Tito Ballestreros.

Ele parte do princípio que vivemos numa esfera digital movida pelo conceito de objeto mudado ou Internet das coisas[1], que, no caso dos meios de comunicação, modificará a rádio e, particularmente, as suas ofertas programáticas.

Ele pensa em pessoas conectadas a aparelhos de escuta, a partir dos seus próprios impulsos cerebrais, sintonizando os canais de áudio da sua escolha. Essa nova noção de programação baseada em impulso irá ordenar ao cérebro, com base nas impressões digitais de cada ouvinte, para contatar qualquer meio no mundo via online e permitir o acesso a conteúdo específico.

A programação de rádio não será mais proposta por um comunicador ou especialista em matéria de som, mas sim por uma espécie de algoritmos ou sensores cerebrais. Além disso, a programação da rádio será alimentada por outros conhecimentos que não a comunicação social e prevemos que intervirão físicos, matemáticos, assistentes virtuais, inteligência artificial e até robótica.

Ballestreros avança na ficção dizendo que graças aos avanços médicos, as pessoas viverão mais, enquanto as experiências de rádio serão modificadas para servir a novos públicos. O texto sonoro terá uma ótima receção em pessoas entre 90 e 110 anos, as formas de narrar, portanto, mudarão e o meio não será nada sem a ajuda de suportes biónicos ou sentidos expandidos. As emissoras terão muito mais atores disponíveis para receber suas mensagens e o público será cada vez mais exigente. Começará a era do turismo espacial e aumentarão os programas de rádio sobre esta experiência e diariamente serão realizadas transmissões ao vivo do espaço. Tudo isso acontecerá no futuro e o fato de não participarmos disso não significa que não existirá.

Sabemos, por informações biológicas, diz ele, que a mudança de humor de uma pessoa pode ser modificada de acordo com o ambiente em que se encontra. O suporte da tecnologia e da Internet das Coisas, os humores podem mudar de forma autónoma. Práticas como mudar as cores das paredes de uma sala, acender ou apagar as luzes, escolher roupas, usar maquilhagem mais ou menos colorida no futuro serão simplesmente rotinas.


A programação como a conhecemos hoje será uma coisa do passado. Outras formas florescerão. Os meios de comunicação, em geral, “vão-se render” ao público, vai construindo as suas ideias, agora sim, com ele. A inovação continuará a ser oxigénio para o meio de comunicação e, a partir de agora, o mundo estará sempre em beta, em teste.

As notícias, segundo Ballestreros

As notícias deixam de ser massivas e os públicos focados nos geo-hábitos vão querer ter informações personalizadas e tudo isso também vai acontecer graças aos algoritmos e à chamada pegada digital. As rádios noticiosas irão programar os seus conteúdos não apenas a partir do som, mas comunicarão suas ideias a partir de propostas baseadas em novos e ampliados sentidos externos como os proporcionados pela realidade aumentada.


 

As notícias deixarão de ser apenas ouvidas. Será possível cheirar, sentir e ouvir através de um dispositivo móvel. Os odores de reportagem de notícias deixados por uma explosão podem ser farejados por meio de um dispositivo móvel. O teletransporte das informações ou convidados para a cabine será diário[2]. Em alguns anos, o ouvinte controlará toda a experiência auditiva.

Com a superabundância de informações, a rádio perderá credibilidade como meio de comunicação de massa, notícias falsas e não confirmadas inundarão a sua vida e ganharão aqueles que mantiverem o melhor equilíbrio informativo. não será necessário ter um rádio para ser informado. As notícias vão saltar em todas as partes do mundo, vamos tropeçar nelas e é por isso que a rádio noticiosa, que não oferece mais que notícias, perderá a sua grande força, a sua zona de segurança. será necessário aprofundar a análise, a convergência, em algo mais do que relatar a partir da já exaurida pirâmide invertida, do quê, quem, como, quando e onde.

A rádio, as coisas

As cabines das estações mudarão a sua aparência sem necessidade de grandes investimentos.

O dispositivo físico a partir do qual o meio de comunicação é sintonizado, conectado à Internet, também permitirá o aparecimento de hologramas. "Muda a frequência, os hologramas mudam”.

Graças à Internet das Coisas, a transmissão conectada à Internet fornece aos produtores informações em tempo real sobre os temas que estão a ser tratados em cada espaço sonoro. Estatísticas, dados, figuras, mapas e recursos que serão conectados via Bluetooth para alimentar os conteúdos programáticos quando necessário.

Os microfones biónicos terão discos rígidos. Em última análise, com a Internet das Coisas, os objetos "pensarão" por si próprios.

A partir do aparelho de escuta será possível saber informações adicionais àquelas narradas por cada locutor, o aparelho a partir de telas adicionais ou suspensas fornecerá links, bibliografias, dados, estatísticas, etc.

Todos terão a voz que desejam. Graças à realidade aumentada, os ouvintes podem "caminhar" virtualmente pelos locais descritos nos programas de rádio. Se o locutor narra uma perseguição policial ao vivo e direta, ela pode ser acompanhada a partir de realidade aumentada pelos ouvintes como se estivessem no local dos fatos.


Usando implantes de chips no corpo humano, podem ser gravadas paisagens sonoras, por exemplo.

A música de cada estação pode ser personalizada. Pode haver composições musicais ou arranjos feitos pela comunidade onde os meios de comunicação estão localizados. A Internet das Coisas transformará as produções sonoras em conteúdos envolventes. Ou seja, menos transmissores com mais recetores participando da ação da rádio.

Todos os equipamentos recetores serão dotados de inteligências que permitem traduzir qualquer mensagem e oferecê-la na língua do lugar geográfico de onde o sinal é sintonizado. Os tradutores ficarão melhores e mais rápidos.

A tecnologia impulsionará a criatividade temática. Outros tipos de narrativas que não conhecemos hoje irão aparecer e os géneros e formatos serão reformulados. O criativo da rádio nunca pode ser substituído, o resto da equipe pode não ser necessário. Correr riscos sempre será importante e fará, como hoje, a diferença entre um e os outros líderes de rádio.

A internet será regulamentada. Como modelo de negócio, a web oferecerá respostas para formas reais de monetizar conteúdo, canais e multicanais. Ninguém vai querer pagar por publicidade como hoje é feita nos meios de comunicação porque a forma de promover os produtos encontrará mais efeitos positivos nos espaços alternativos do que nos convencionais. O futuro representa uma mudança de mentalidade para a publicidade: o comércio eletrónico será sua nova plataforma, seu novo aliado.

Os futuristas dizem que até 2030 milhões de empregos desaparecerão. As pessoas terão mais tempo livre. Os empregos serão escassos e o ludismo reunirá todas essas experiências que procuram passar o tempo utilizando-o em alguma atividade, então, a rádio terá um público ávido por entretenimento, informação e participação.


 

Ballestreros antevê novos dispositivos

Visualizadores de realidade virtual.

Assistentes virtuais para procura de notícias.

Dispositivos com inteligência artificial para aprender mais sobre o público.

Novos sentidos fora do corpo para ouvir de forma diferente e assim interagir com o público.

Mãos e dispositivos remotos para programar o meio de comunicação.

Equipamento para projeção de holografias e transporte da imagem para o aparelho recetor.

Microfones e terminais inteligentes que contribuem com recursos para programas ao vivo.

Óculos para monitorar o público onde quer que esteja.

Simuladores para a realização de transmissões ao vivo.


Plataformas holográficas para fixar pontos de transmissão.

Roupas inteligentes para se conectar com o público e receber informações.

Telefones inteligentes, autónomos e com inteligência artificial.

Equipamento de tradução inteligente para quebrar a barreira do idioma em espaços aéreos.

Monitores com áudio e vídeo da mais alta qualidade.

Dispositivos pequenos para armazenar grandes quantidades de música.

Smart desks que vão “falar” com quem interage.

Cadeiras e móveis conectados à Internet.

Antenas e transmissores em tamanhos pequenos.

As edições de rádio podem ser feitas telepaticamente.

A rádio, que é uma tecnologia, é chamada a abraçar com todo carinho e trabalhar em equipe com as novas tecnologias. A dinâmica da mudança exige que os jornalistas de rádio mudem.

O caminho é incerto, mas, certamente, também emocionante.


 

Inspiração em Cuadernos de radio, de Tito Ballesteros López.

Fonte:

https://drive.google.com/drive/folders/1wiyZ2w-dsUcLiam2PJ-u12Ioc9I_0xOB.

 

Rui de Melo

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

Professor Associado, aposentado, da Universidade Fernando Pessoa



[1] O conceito de Internet das Coisas foi proposto por Kevin Ashton no MIT Auto-ID Center em 1999.

[2] A palavra teletransporte foi criada pelo escritor e pesquisador americano Charles Fort no início dos anos 1930. Ele usou a palavra para descrever a conexão entre desaparecimentos e aparições misteriosas em diferentes partes do mundo.

Adriano Correia de Oliveira, meu colega dos desafinados da turma B

 

Adriano Correia de Oliveira, meu colega dos desafinados da turma B



Rui de Melo

 

Tributo a Adriano Correia de Oliveira apareceu no grupo de amigos de Arnaldo Trindade, no Facebook.

Fomos colegas na turma B do 1º ano, no Liceu Alexandre Herculano. Adriano era um rapaz alto, afável, bom colega e bom aluno. Enquanto ele era o maior da turma eu era um dos mais pequenos. Fazia questão de me proteger dos cachaços que os mais pequenos levavam dos mais crescidos. Quando chegou a altura de fazer a classificação das vozes, lembro-me que havia três categorias: a primeira voz, a segunda voz e os desafinados. O Adriano e eu fomos classificados como desafinados…

O Adriano entrou na Faculdade antes de mim. Quando nos reencontrámos, na Estação Nova, em Coimbra, rejubilámos e recordámos o episódio dos “desafinados”. Adriano era, então, a par de José Afonso, uma figura reconhecida no meio universitário como uma das importantes vozes de intervenção contra a situação política que se vivia.

A minha atividade na rádio permitia-me divulgar tudo o que o Adriano produzia. Foi sempre um dos "obrigatórios" nos meus programas

O espírito sereno que lhe conheci nos tempos do liceu tinha dado lugar a um espírito agitado. Coimbra mudara o rapaz de Avintes que andara comigo nos estudos liceais. No entanto, continuava generoso, tendencionalmente protetor dos mais fracos como sempre o mostrou no seu intervencionismo.

A vida profissional fez-me abandonar a Faculdade. A vida militar separou-nos ainda mais. Os encontros esporádicos em Coimbra deixaram de acontecer.

Nunca me disse que tinha aderido ao Partido Comunista. Também nunca lhe perguntei nada sobre particulares opções políticas porque o importante é que éramos do “contra”.

Só quem viveu aqueles tempos pode dar o verdadeiro valor do que foi o ato heroico de cantar Manuel Alegre, em O Canto e as Armas.

Adriano Correia de Oliveira está entre os fundadores da Cooperativa Cantarabril (com quem, mais tarde, romperia). A atividade despoletada pelo 25 de Abril fez-nos só reencontrar em entrevistas ocasionais de espetáculos ou lançamento de discos. Depois, perdemo-nos de vista. Quando soube da sua morte e trágicas circunstâncias, em 1982, lamentei o nunca poder ter retribuído o protecionismo juvenil que dele recebi. Em compensação, ajudei a fazer de cada disco dele um êxito.

Alguma justiça lhe fizeram os poderes públicos. Em 24 de Setembro de 1983 foi feito Comendador da Ordem da Liberdade e a 24 de abril de 1994 foi feito Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, ambas as condecorações a título póstumo.

Os amigos mais íntimos foram criando formas de o manter vivo na nossa memória e na nossa gratidão por quem deu tudo pela liberdade e pela justiça social num cantar único de sensibilidade atuante. Assim se criou o Centro Artístico e Cultural Adriano Correia de Oliveira e escolas e ruas têm o seu nome.

 

Rui de Melo


Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca

e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

Serviço público de radiodifusão e o tributo a Bustamante

 

Serviço público de radiodifusão e o tributo a Bustamante

 


Rui de Melo

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca

e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

 

O Professor Enrique Bustamante, faleceu no dia 20 de junho, em Málaga.  Catedrático jubilado da Universidade Complutense de Madrid, e um dos principais investigadores europeus da área da Cultura e Comunicação Audiovisual, foi um dos meus professores do Curso de Doctorado da Pontificia de Salamanca. Com ele, entre muitas outras coisas, falámos do serviço público de rádio e de televisão e como ele deve ser objeto de um grande Pacto Social, celebrado entre os seus profissionais e a sociedade civil, apoiado no Parlamento e garantido pelo poder executivo. A minha experiência como profissional do Serviço Público de radiodifusão tinham-me deixado em dúvida quanto às ideias e práticas de participação da sociedade civil nos conteúdos do serviço público de rádio e de televisão.   É uma linha de pensamento que atravessa os investigadores do Conselho da Europa, embora sublinhem que tais propostas não podem substituir as decisões democráticas de base social, mas sim ativá-las, fornecendo elementos de análise e ação.

A legitimidade social, democrática e jurídica do serviço público de radiodifusão é inquestionável à luz tanto da doutrina da União Europeia como das disposições constitucionais e da legislação em vigor. Mas exigem-se condições precisas que garantam a execução do serviço público para os fins pretendidos.

Bustamante dizia que o serviço público de radiodifusão é um mandato imperativo do modelo social europeu, por mais que cada Estado-Membro tenha capacidade para o adaptar às realidades nacionais. Ele lembrava as menções e citações no mesmo sentido do Protocolo de Amsterdão de 1997, incorporado no Tratado de Lisboa com valor constitucional, que concorda, posteriormente, com a Carta dos Direitos Fundamentais da União de 2007 para atender às necessidades sociais e culturais e democráticas da sociedade e ter em conta que, incluindo nas funções de controlo, a Comissão de Bruxelas havia de confirmar a legitimidade do serviço público nas suas comunicações de 2001 e 2009 sobre financiamento público.

Além disso, a referida Carta estabelece os direitos de liberdade de expressão e pluralismo (artigo 11), que segundo o Grupo de Alto Nível criado para este fim (High Level Group on media Freedom & Pluralism) significa a existência de reguladores audiovisuais independentes e meios públicos de comunicação com “regras rígidas que proíbem a ingerência política e garantem o seu pluralismo”.

Desde o famoso McBride Report, vincam-se as obrigações contraídas com a Convenção sobre a proteção da diversidade cultural da UNESCO de 2005, rubricado pela U.E., ou as múltiplas proclamações feitas no Conselho da Europa, muito ativo na definição de boas práticas neste domínio.

Existem também inúmeras resoluções do Parlamento Europeu no mesmo sentido: por exemplo, em 3 de abril de 2012, o Diário Oficial da U.E. publicou uma resolução que proclama o papel fundamental "de um sistema europeu dual de rádio e televisão verdadeiramente equilibrado", exigindo um financiamento estável e suficiente e "apelando aos Estados-Membros para que ponham fim à ingerência política no que diz respeito aos conteúdos produzidos pelos organismos de serviço público".

No Relatório do Conselho para a Reforma dos Meios de Comunicação Públicos do Estado de 2005, foi dada ênfase às estruturas de governação e financiamento, como condições sine qua non para consolidar um serviço público autêntico; embora também tenha sido assinalado que estas estruturas, por si só, não garantiam o sucesso, na ausência de consciência dos agentes políticos e, sobretudo, da sociedade civil. Portanto, concluiu-se que a falta de estruturas adequadas condenou o serviço público à crise permanente, sua degradação e, por fim, sua marginalização ou extinção.

Paralelamente e em escala internacional, um relatório da UNESCO do mesmo ano também reconheceu que “poderia ser simplista supor que uma réplica completa desses sistemas e práticas em diferentes ambientes produzirá os mesmos resultados benéficos”. Porque "como em outras esferas de atividade, o sucesso ou o fracasso do serviço público de radiodifusão depende de uma série de fatores, incluindo a sua história local, geografia, cultura, ethos político e condições sociais e económicas" (UNESCO, 2006).

Recordar esses elementos básicos da boa governança ajudam a enquadrar a situação. Ainda mais no contexto de um sistema mediático e televisivo que evoluiu consideravelmente, não só pelo impulso das mudanças tecnológicas ou da crise económica, mas também como consequência de decisões políticas e regulamentares que, frequentemente, foram envoltos nesses fatores para melhor moldar o espaço público de forma partidária.

Diz Castells, um dos meus autores de referência, que estamos a testemunhar uma clara “crise de legitimidade democrática”. Essa ascensão da síndrome do descontentamento cidadão, que atinge a democracia representativa, incluindo os meios de comunicação e os jornalistas, "não deve ser interpretada como uma crise da política, mas como um processo de mudança”, com a procura de novas formas de participação política e aprofundamento da democracia, com novos representantes da sociedade civil e o combate à corrupção visando a regeneração do sistema político.

A atualidade política portuguesa mostra que a transparência não é fácil, acentuando-se a dificuldade de controle de enriquecimentos não justificados. Num ambiente global de mobilizações de protesto social sem precedentes (da Islândia em 2008, passando pelas primaveras árabes e o 15-M espanhol em 2011, até Hong Kong em 2014 e 2020), a ação direta coletiva é combinada com a ação desencadeada na interconexão social.

Espera-se, assim, uma nova conceção democrática ligada ao Governo Aberto, de transparência informativa dos atos públicos, mas também de compreensão da democracia como um processo de construção coletiva da sociedade em que os cidadãos desempenham um papel ativo como "produtores de governança". Uma profunda transformação da participação direta e do controle dos cidadãos/usuários que as novas redes possibilitam hoje e que é perfeitamente “compatível com a responsabilidade (accountability), com a eficácia e eficiência da boa governança”.

Respeitando as competências dos Parlamentos, como autêntica representação da sociedade, é necessário dar voz direta à sociedade civil e às suas entidades representativas a nível estadual e local, colocando-as no centro da gestão e do controlo das suas missões; além disso, é necessário encontrar um novo modelo viável e sustentável de financiamento do serviço público e tentar consciencializar o público sobre a sua capacidade de influenciar as redes sociais públicas.

Rentabilidade social

A lógica do serviço público europeu é regida pela ideia de rentabilidade social. Esta rentabilidade social implica em termos democráticos (pluralismo ideológico e participação democrática), com acessibilidade total aos serviços audiovisuais para pessoas com deficiência; diversidade cultural (promoção e divulgação de cultura de qualidade); e a defesa dos valores e dos direitos humanos e sociais, desde a luta pela igualdade de género e origem racial até à expressão e defesa das minorias e o apoio informativo e valores do Estado Providência.

A utilização de indicadores que refletem o pluralismo político e social já se tornou uma prática sistemática dos serviços públicos e das autoridades audiovisuais europeias. A rentabilidade social engloba esses aspetos, mas tem de ir muito além e refletir-se num conjunto de indicadores que meçam o impacto do serviço público sobre os cidadãos.

A rentabilidade social do serviço público assenta, singularmente, em alguns conteúdos cuja divulgação cumpre uma importante função no domínio da educação, saúde, cultura, desporto, acessibilidade para pessoas com deficiência, igualdade de género, exercício efetivo dos direitos fundamentais e, em geral, nas campanhas de consciencialização cidadã, cujo impacto dos programas vai muito além das campanhas institucionais planeadas.

O serviço público devia desempenhar um papel importante ao nível da inovação cultural e criativa (incluindo o desenvolvimento de novos formatos audiovisuais) e desempenhar um papel essencial na literacia e no acesso às novas tecnologias e redes digitais.

Porém, a cidadania tem dificuldade em ver o serviço público comprometido com a ideia de uma comunicação de “interesse social”. Desconhece-se qualquer avaliação de impacto social neste sentido, bem como da sua quantificação económica como investimento em capital social.

Já em 2005, o Relatório do Conselho para a Reforma propôs indicadores de controle para medir o pluralismo e a diversidade (ICR 2005, pp. 85-87). Os conteúdos que podem ser considerados de interesse social, como prevenção à saúde, obesidade infantil, cancro, combate ao bullying, violência de género ou acidentes de trânsito.

A criação de sinergias entre as diferentes plataformas é essencial. Sem abandonar a produção de conteúdos para os canais tradicionais, a capacidade de produção do serviço público de radiodifusão deve ser colocada ao serviço da criação de novos conteúdos para plataformas interativas, mas em sinergia com a programação tradicional.

A programação, nos tempos atuais, deve ser pensada em termos de consumo linear e não linear, num compromisso social de televisão e rádio. Toda a programação e conteúdo devem estar disponíveis em plataformas interativas.

Participação e comunidade.

A interatividade e a participação do público devem ser valores desenvolvidos transversalmente, tanto na programação linear quanto em plataformas interativas. Bustamante chega a propor que todo o conteúdo deve ser projetado para criar comunidades. E sublinha que a participação em redes sociais e a incorporação de conteúdos criados pelo público exige novos padrões em Códigos Deontológicos e Livros de Estilo.

Personalização.

O tratamento dos dados coletados em plataformas interativas deve ser aplicado para melhor determinar as necessidades do público e permitir a personalização do conteúdo. Há que estabelecer critérios de acesso a conteúdos especiais, convite para programas, debates, etc., para além do direito de participar na eleição do conselho geral independente.

O tratamento dos dados será realizado respeitando os direitos dos usuários e sem qualquer exploração comercial posterior. Todos os conteúdos e serviços devem ser customizáveis ​​e permitir ao usuário consumi-los em diferentes plataformas a qualquer hora, lugar e dispositivo.

O esforço a desenvolver deve compatibilizar-se com o caráter bilateral da taxa. Ou seja, é também um pagamento que deve ser feito para receber algo em troca. No âmbito público, por exemplo, ao pagarmos a taxa de saneamento básico estamos a receber em troca o serviço de recolha de lixo das ruas, providenciado pelo ente público. Também aí há uma troca de serviço pelo pagamento. Ora, a taxa do audiovisual sempre foi de bilateralidade problemática. Não há a linearidade do exemplo citado. Ou seja, a escolha do serviço não se liga, diretamente, à vontade própria do utilizador.

A bilateralidade mitiga-se no conselho geral e no conselho de opinião. Ao dar uma vista de olhos pelos seus componentes verifica-se uma umbilical relação partidária. Com mais ou menos variáveis, a velha lógica mantém-se: assembleia nomeia governo, governo nomeia administração, administração nomeia diretores, diretores nomeiam chefes, o que resulta numa unilateralidade imposta

Procurando contrariar esta lógica, Henrique Bustamante formou o Teledetodos.

Propostas de participação cidadã de teledetodos

Bustamante acreditava que os meios de comunicação públicos apostariam na participação cidadã efetiva e com toda a amplitude possível. A sociedade civil (organizações e movimentos de cidadãos com capacidade representativa) pode e deve estar ciente da importância que o serviço público de comunicação pode ter na melhoria da qualidade democrática da vida pública e no progresso da sociedade como um todo. Portanto, a sua presença nos mais altos órgãos de gestão do serviço público e sua participação sistemática nas decisões de programação e conteúdo devem ser consideradas lógicas e naturais.

Esta ligação entre os cidadãos e o seu direito à participação efetiva deve traduzir-se numa mudança profunda nos canais e procedimentos de consulta, de acordo com os princípios elementares do que deve ser um governo aberto.

Além disso, o desenvolvimento de um serviço público exige imperativamente, por razões de legitimidade e raízes na sociedade e como marcas da doutrina europeia, uma gestão autónoma, controlada por autoridades externas e independentes, bem como por uma comissão parlamentar; protegido da interferência de governos e grupos de pressão privados e enraizado na participação intensiva dos cidadãos.

Quem quiser, pode visitar o site https://teledetodos.es/

 

Rui de Melo

 

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca

e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

 

Rádio comunitária - um meio de expressão da comunidade

Rádio comunitária - um meio de expressão da comunidade

 

Resumo:

A rádio comunitária, sem expressão na península ibérica, existe já um pouco por todo o mundo, umas constituindo experiências isoladas e sem expressão, outras completamente inseridas na respectiva realidade nacional ou regional, ligadas a conferências internacionais, a publicações e outros grupos de interesses ou de actividades.

Abstract: 

Community radio, without expression in the Iberian peninsula, it already exists a little for everywhere, some constituting isolated experiences and without expression, other completely inserted in the respective national or regional reality, tied up to international conferences, to publications and other groups of interests or of activities.

1. O fenómeno das rádios comunitárias

Ao longo dos últimos anos, a rádio conheceu uma grande evolução por todo o mundo. A par das rádios de serviço público e das rádios comerciais, a América Latina desencadeia um processo original com a criação das rádios comunitárias  que rapidamente se espalha um pouco por todo o mundo. O papel destas rádios tem-se centrado em dar voz a determinados grupos sociais de âmbito religioso, universitário, minorias étnicas, minorias culturais e outras. O orçamento é necessariamente modesto, com o financiamento a provir da boa vontade do pessoal que nelas trabalha, de contribuições voluntárias de associados e respectivos ouvintes e raramente da publicidade. Trata-se de levar por diante uma missão comprometida com a facilitação da livre circulação da informação, potenciando a liberdade de expressão e o diálogo no seio das comunidades em que aquelas rádios se inserem, por forma a criar condições para uma participação mais activa das populações na res publica.

A partir de 1989, as rádios comunitárias conheceram um incremento assinalável, beneficiando das inovações e dos progressos tecnológicos na área do equipamento, da redução dos preços dos emissores em FM, do fim dos monopólios de serviço público de rádio, da conquista de espaço político por parte das forças democráticas e do aparecimento de novos actores privados.

A rádio comunitária, sem expressão na península ibérica, existe já um pouco por todo o mundo, umas constituindo experiências isoladas e sem expressão, outras completamente inseridas na respectiva realidade nacional ou regional, ligadas a conferências internacionais, a publicações e outros grupos de interesses ou de actividades. Vale a pena recorrer à UNESCO  para conhecer alguns exemplos deste tipo de rádio.

Há casos de reagrupamento de populações duma mesma etnia (como a rádio dos Hilltribes de Chiangmai na Tailândia), de trabalhadores de uma mesma actividade económica (como os mineiros da Bolívia), os naturais duma mesma aldeia (como em Appam ou Dormaa Ahengkro no Ghana), os 3 000 habitantes de uma ilhota com a Rádio Sunshine de Niué no Pacífico.

Os apoios surgem de organizações confessionais (como a Associação Mundial para a Comunicação Cristã, o Conselho Ecuménico das Igrejas, a Fundação Luterana Mundial, a Associação Católica Internacional para a Rádio, a Televisão e o Audiovisual - UNDA), de partidos políticos ou ainda de organismos de desenvolvimento.

A Associação Mundial das Rádios Comunitárias (AMARC) e a Associação Internacional de Radiodifusão (AIR) são organismos internacionais à volta dos quais se juntam as rádios comunitárias.

 

 

1.1. A rádio comunitária em África

Em África, a rádio cresceu significativamente nos últimos anos, particularmente no que se relaciona com o número de receptores. Para tal terá contribuído o facto de a rádio corresponder melhor à tradição oral das culturas africanas e permitir o uso de uma grande variedade de línguas vernáculas. Com metade da população analfabeta, a função educativa que cabe aos media, e à rádio em particular, revela-se essencial para a difusão de uma cultura democrática e melhoria da qualidade de vida, no combate contra a pobreza, a má alimentação, a doença e a iliteracia. Com o fim dos monopólios de estado, surgiram algumas rádios comunitárias, fundadas na ideia da participação dos ouvintes e com o funcionamento assegurado por um ou dois profissionais, sendo os restantes colaboradores a título voluntário. No intuito de se autonomizarem em relação às autoridades públicas, a maioria destas rádios organiza-se em regime associativo.

Em geral, os países africanos receberam, com a independência, as instalações radiofónicas dos colonizadores e o respectivo regime de monopólio que só muito recentemente começou a abrir-se, timidamente, à iniciativa privada.

Com a televisão e a imprensa concentradas nas grandes cidades, só a rádio tem condições para cobrir os territórios. O certo é que o processo de democratização, que foi ocorrendo um pouco por toda a África, deu lugar a profundas modificações na paisagem mediática do continente.

Em países como o Benin, o Burkina Faso, a Guiné, o Mali ou o Senegal, o fim do monopólio da rádio pública deu lugar à criação de órgãos de regulação e de uma legislação aberta ao pluralismo. No entanto, algumas experiências de rádios privadas ou comerciais revelaram dificuldades de afirmação numa paisagem radiofónica dominada tradicionalmente pelo sector público. De uma maneira geral, os poderes públicos controlam o processo de atribuição de frequências e favorecem as rádios do sector público. É uma situação fruto do inconformismo do poder em relação à perda do controle de um meio tão determinante como a rádio. Só que o efeito se revela contrário à vontade dos poderes já que a África se destaca pela preferência que dá às rádios internacionais. Ou seja, a ausência de pluralismo à escala nacional e local pode revelar-se, a prazo, como uma ameaça para a identidade cultural do próprio país.

A África Ocidental já dispõe de várias rádios comerciais, especializadas ou generalistas como a Africa N°1 no Gabão, Horizon FM no Burkina Faso, Rádio Multi Media e a Rádio TSF em Cabo Verde, a Radio Jeune Afrique Musique e a Radio Nostalgie, na Costa do Marfim, e a Sud FM, no Senegal. Nos países anglófonos e lusófonos, exceptuando a África do Sul, a Guiné-Bissau, a Namíbia, a Nigéria, o Uganda e a Zâmbia, as leis da radiodifusão não contemplam a criação de rádios privadas.

Na África do Sul, a rádio adaptou-se à sociedade pós apartheid, com a criação, em 1997, de sete rádios privadas criadas por novos operadores identificados com a identidade africana . A maior parte das rádios africanas, públicas ou privadas, dispõe de parte importante da sua programação em francês, inglês ou português. Esta tendência aparece reforçada com o surgimento, em 1992, de cadeias em formato "music and news" em FM. Porém, ainda há países como Angola, Madagáscar e a República da Tanzânia, onde as cadeias de rádio difundem a totalidade da sua programação nas línguas locais. Mesmo assim, se a rádio permanece como o único verdadeiro meio de comunicação de massas, a radiodifusão em FM está limitada apenas a algumas cidades. Quanto à radiodifusão directa por satélite, por cabo, analógica ou digital estão completamente fora de questão em África, tendo em conta o custo das instalações técnicas necessárias.

Em 1995 existia já uma centena de rádios locais, rurais, públicas ou privadas, situando-se sobretudo nos meios rurais ou em cidades secundárias. É uma realidade vivida no Burkina Faso  e no Mali, que dispõem, respectivamente, de 10 e 21 rádios comunitárias em regiões rurais, ao contrário do que se passa em relação às rádios comerciais que se concentram nas grandes capitais .

O Mali tem vindo a constituir um exemplo de dinamismo radiofónico a partir da conquista da liberdade de imprensa em 1991 . Foi neste país que surgiu a primeira rádio de mulheres, irradiando dos arredores de Bamako (Magnambougou) programas realizados conjuntamente com o clube de ouvintes e as associações de mulheres.

No Quénia, foi curta a história da rádio comunitária de Homa Bay, surgida pela iniciativa da UNESCO em 1982. Dois anos depois era encerrada por razões políticas. Só em 1996 apareceu a Kenya Community Media Network (KCOMNET) com o propósito de organizar o conjunto das rádios comunitárias.

No Senegal, em 1994, surgia a Rádio Sud FM como primeira rádio privada do país. O mesmo acontecendo na Gâmbia com a Radio One FM, assentando a sua programação em emissões participadas, com os ouvintes a darem as suas opiniões pelo telefone.

Os países africanos de expressão portuguesa são um bom campo de estudo deste tema onde, inclusivamente por influência da Igreja Católica, se implantaram estações de rádio privadas, já com alguma influência em Angola (Rádio Eclésia) e Moçambique (Rádio Pax).

Em Moçambique, a Rádio Pax, católica, que desempenhou um papel importante pela independência do país durante a década de 60, depois de ter estado silenciada durante duas dezenas de anos, retomou as suas emissões em 1994. Está agora instalada na região de Inhamizua e retomou o trabalho importante de recolha de documentos sonoros sobre as tradições locais. Estão previstos projectos de rádio para Maputo, Quelimane, Chimoio e Pemba .

Entretanto, a lei da imprensa, de 1991, permitiu a livre criação de media e garante o direito à liberdade de expressão. Há 65 rádios comunitárias.

Entrou em funcionamento, em Xinavane, o primeiro Centro Multimédia Comunitário (CMC), em Moçambique, parte integrante do projecto UNESCO.

Mas há outras interessantes experiências em Cabo Verde com a Rádio Multi Media e a Rádio TSF.

Na Guiné-Bissau, com o apoio e a cooperação técnica da Suíça, surgiram rádios regionais, em 1992, nas quatro regiões do país (Kankan, Labé, Kindia e N’Zérékoré). A população vive intensamente estas rádios, participando directamente na produção de programas. Em 1993, teve a experiência da Rádio Quele criada com o fim de desencadear uma forte campanha de saúde pública para o combate a uma epidemia de cólera. A primeira rádio privada, Galaxia de Pindjiquiti, só apareceu em 1995, com emissões em crioulo, português, wolof e sousso, tomando como tema dominante o desenvolvimento. Na ilha de Bubaque, foi também criada uma rádio local por uma organização não governamental no âmbito de um projecto de "Reserva da biosfera".

Em Angola, o programa SOS Media foi introduzido em 1998. Possibilitou, de imediato, a formação de 80 profissionais de rádio, dos quais 27 mulheres, ajudando-os a produzir emissões sobre o desemprego, os meninos da rua, a saúde e a condição feminina. Difundidos pela Rádio das Nações Unidas e as rádios do Estado, estes programas destinaram-se a preparar o terreno para a criação de estações de rádio independentes.

1.2. A rádio comunitária na América do Sul

Na América do Sul, a rádio experimentou um desenvolvimento considerável nas últimas décadas, o que levou Garitoandía a dizer que “a rádio tanto mais progride quanto maior for a percentagem de iletrados de um país”.

O panorama radiofónico é dominado por rádios comerciais e semi-públicas. Este aspecto criou condições para o despontar de inúmeras rádios locais. O fenómeno das rádios comunitárias tem neste continente a sua expressão máxima. No Brasil chamam-lhes rádios livres, participativas na Nicarágua, populares no Equador e no Peru  e só na Argentina lhes chamam mesmo rádios comunitárias. A estas há que juntar as rádios educativas privadas da Igreja Católica. A maior parte delas tem mesmo licenças comerciais, mas preferem beneficiar do estatuto particular de rádios de índole educativa e cultural.

Como a realização de programas educativos exige pessoal especializado no ensino e enquadrado nos programas educativos nacionais, estas rádios são frequentemente financiadas por organismos internacionais, nomeadamente fundações europeias de carácter confessional. Estas rádios comunitárias nascem sobretudo de esforços conjugados de associações de mulheres, de organizações camponesas, de partidos políticos, de sindicatos ou de clubes de jovens.

Um número razoável destas rádios elabora textos impressos em offset, destinados ao acompanhamento dos conteúdos das emissões. Outras distribuem cassetes áudio e diapositivos. Outras ainda trabalham em colaboração com voluntários, os chamados "reporteros populares", formados em meios desfavorecidos ou marginalizados pelos media estabelecidos. Recebem uma formação das técnicas de reportagem para poderem estabelecer um bom relacionamento entre a comunidade e a estação de rádio .

Mario Kaplun  pôs em marcha o fórum de animação por cassetes, no Uruguai e na Venezuela. Funciona como um sistema de comunicação comunitária especificamente latino-americano, servindo de ligação entre as organizações populares e fornecendo um meio de comunicação com os responsáveis das cooperativas rurais ou dos sindicatos de agricultores.

A AMARC e o Centro de Educación Popular (CEDEP) lançaram uma iniciativa; em 1996, que constitui um serviço radiofónico de notícias chamado Pulsar. Pretende-se que as estações de rádio comunitárias da América Latina e das Caraíbas  aproveitem as múltiplas possibilidades da Internet.

A Asociación Latinoamericana de Educación Radiofónica (ALER), fundada em 1972, reúne cerca de 60 rádios educativas. Os membros da ALER facultam instrução a mais de 1 milhão de estudantes inscritos nos cursos das escolas radiofónicas e chegam a mais 15 milhões de ouvintes que seguem as emissões da "Universidade das Ondas" dedicadas aos programas de desenvolvimento agrícola, sanitário ou outros.

1.3.    A rádio comunitária na Ásia

1.3.1. Timor.

Em 2003, a colaboração com as rádios comunitárias de Timor abrange três rádios, Lospalos, Maliana, Liquiça para a formação, o apoio à gestão e a produção, e o fornecimento de equipamentos.

As rádios comunitárias representam um instrumento único para os projectos de desenvolvimento local – e, em Timor, tiveram e têm um papel central: reconstrução do elo social, dar a palavra às comunidades, educação popular, espaço de debate e de expressão fora dos centros urbanos.

Desde o início do ano 2000, a INDE tem apoiado iniciativas de rádio comunitária em Timor. Foi primeiro com a RCL – Rádio Comunidade de Lospalos, onde foi proposta uma original cooperação Sul-Sul, com um formador vindo da Guiné-Bissau (animador das rádios comunitárias da ONG guineense AD), a enquadrar um grupo de correspondentes voluntários para dar os primeiros passos na realização de reportagens, edição em estúdio, e dinamização comunitária.

A segunda etapa foi em Maliana, no extremo oposto de Timor, ao lado da fronteira com a Indonésia. A colaboração com a Rádio Maliana permitiu igualmente a formação de correspondentes, o reforço do comité de gestão da rádio, e uma melhor inserção desta dentro da comunidade.

Em 2003, a INDE continuará de apoiar as rádios de Lospalos e Maliana, mas vai igualmente iniciar uma colaboração com Rádio Tokodede, uma rádio comunitária estabelecida em Liquiça, uns 40 kilómetros a oeste de Dili. Trata-se assim, mais do que apoiar individualmente três rádios, de propor uma colaboração concertada que permite entre as rádios trocas de técnicos, de programas e de métodos de trabalho.

A colaboração agora reforçada permite a formação dos técnicos das três rádios, a formação e a indemnização de correspondentes num conjunto de aldeias situadas nas zonas de difusão das rádios, o apoio em equipamento para os correspondentes, incluindo apoio de transportes, um suporte ao funcionamento dos comités de gestão das rádio, e o apoio à produção de programas para as comunidades. São igualmente propostos receptores solares em aldeias seleccionadas.

Os projectos de apoio às rádios comunitárias de Timor tiveram o apoio do Governo Português (CATTL) em 2000, da USAID (2002 e 2003), e da solidariedade dos Portugueses.

1.3.1. O resto da Ásia

As Filipinas dispõem de 35 estações de rádios locais animadas por grupos comunitários, associações confessionais e organismos educativos. O grupo de rádios locais Tambuli é formado por 6 pequenas estações comunitárias distribuídas por regiões isoladas, integrando as populações locais no processo político, económico e cultural .

Na Tailândia, a rádio de Chiangmai, região do Norte habitada por tribos da montanha, há bastantes anos que tem uma programação de divulgação de culturas de substituição, participando num programa governamental destinado a reduzir e a eliminar a prazo a cultura da dormideira.

O Reino de Tonga, beneficia do apoio da UNESCO na instalação de emissores de FM e de relais em ondas decamétricas na ilha mais setentrional, com o propósito de estabelecer uma cobertura satisfatória em todas as ilhas a um custo muito mais baixo do que se fossem utilizados emissores de ondas médias.

No Sri Lanka, a Rádio Mahaweli foi criada em 1979 por iniciativa da UNESCO e da Agência dinamarquesa internacional para a assistência a desenvolvimento (DANIDA) por ocasião do lançamento do projecto de construção duma barragem hidroeléctrica .

A Austrália tem o meio rádio repartido por três grandes sectores, o Australian Broadcasting Corporation, as rádios comerciais e as comunitárias da Public Radio. As rádios deste Third Sector são exploradas por associações sem fins lucrativos e servem áreas geográficas bem definidas ou segmentos da população com particulares necessidades. São auto-financiadas através de contribuições da comunidade .

Em 1993, dois radiodifusores australianos, Freda Glynn e Philip Batty, contribuíram para a fundação da Central Australian Aboriginal Media Association (CAAMA), um organismo aborígene que assegura um serviço de difusão contínua por satélite de emissões de televisão e de rádio aborígenes  numa vasta região da Austrália.

Aquele trabalho possibilitou a criação de mais de uma centena de associações aborígenes, que produzem semanalmente centenas de horas de rádio em nove línguas aborígenes, e também programas de televisão. O projecto mereceu o prémio McLuhan Teleglobe Canada o que mostra como foi reconhecido este trabalho de serviço às populações mais desfavorecidas.

Conclusão

O desenvolvimento da rádio comunitária tem tido um lugar muito particular no âmbito dos programas da UNESCO. Na verdade, o objectivo destes programas é divulgar os problemas sociais comunitários, como a pobreza ou a exclusão social; reforçar as minorias étnicas e acelerar o processo de democratização e os esforços de desenvolvimento.

A rádio comunitária representa a democratização dos meios de comunicação. Depois das independências africanas e do processo de democratização dos anos 90, um número não despiciendo de militantes do sector da comunicação considera a rádio comunitária como fundamental para a participação popular.

Existe um conjunto de preocupações de mobilização para interesses comuns em que, naturalmente, as ONG’s estão na primeira linha das vontades.

Na sua forma mais pura, a rádio comunitária é um meio de comunicação que apela ao sentido de comunidade do ser humano, envolvendo criadores, realizadores, animadores e artesãos na construção do meio de expressão da comunidade.

 

 

Reflexões vertidas para aulas por

Rui de Melo

Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na Universidad Pontificia de Salamanca e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto

Professor Associado, aposentado, da Universidade Fernando Pessoa

 

Bibliografia:

Garitaonandía, C., 1991, “Radio”, in Diccionario de Ciencias y Técnicas de la comunicación, dir. de Ángel Benito, Ed. Paulinas – Madrid.

Melo, R., 1999, O Digital Audio Broadcasting e as implicações nos conteúdos radiofónicos, Tesis Doctoral, Universidad Pontificia de Salamanca, Salamanca.

Melo, R., 2001, A Rádio na Sociedade da Informação, ed. UFP, Porto.

Vários Autores, 1997, Rapport mondial sur la communication, UNESCO, Paris

 

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