Serviço público de radiodifusão e o tributo a Bustamante
Rui de Melo
Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na
Universidad Pontificia de Salamanca
e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto
O Professor Enrique Bustamante, faleceu no dia 20 de junho, em
Málaga. Catedrático jubilado da
Universidade Complutense de Madrid, e um dos principais investigadores europeus
da área da Cultura e Comunicação Audiovisual, foi um dos meus professores do
Curso de Doctorado da Pontificia de Salamanca. Com ele, entre muitas outras
coisas, falámos do serviço público de rádio e de televisão e como ele deve ser
objeto de um grande Pacto Social, celebrado entre os seus profissionais e a
sociedade civil, apoiado no Parlamento e garantido pelo poder executivo. A
minha experiência como profissional do Serviço Público de radiodifusão
tinham-me deixado em dúvida quanto às ideias e práticas de participação da
sociedade civil nos conteúdos do serviço público de rádio e de televisão. É uma
linha de pensamento que atravessa os investigadores do Conselho da Europa,
embora sublinhem que tais propostas não podem substituir as decisões
democráticas de base social, mas sim ativá-las, fornecendo elementos de análise
e ação.
A legitimidade social, democrática e jurídica do serviço
público de radiodifusão é inquestionável à luz tanto da doutrina da União
Europeia como das disposições constitucionais e da legislação em vigor. Mas
exigem-se condições precisas que garantam a execução do serviço público para os
fins pretendidos.
Bustamante dizia que o serviço público de radiodifusão é um
mandato imperativo do modelo social europeu, por mais que cada Estado-Membro
tenha capacidade para o adaptar às realidades nacionais. Ele lembrava as
menções e citações no mesmo sentido do Protocolo de Amsterdão de 1997,
incorporado no Tratado de Lisboa com valor constitucional, que concorda,
posteriormente, com a Carta dos Direitos Fundamentais da União de 2007 para
atender às necessidades sociais e culturais e democráticas da sociedade e ter
em conta que, incluindo nas funções de controlo, a Comissão de Bruxelas havia
de confirmar a legitimidade do serviço público nas suas comunicações de 2001 e
2009 sobre financiamento público.
Além disso, a referida Carta estabelece os direitos de liberdade
de expressão e pluralismo (artigo 11), que segundo o Grupo de Alto Nível criado
para este fim (High Level Group on media Freedom & Pluralism) significa a
existência de reguladores audiovisuais independentes e meios públicos de
comunicação com “regras rígidas que proíbem a ingerência política e garantem o
seu pluralismo”.
Desde o famoso McBride Report, vincam-se as obrigações
contraídas com a Convenção sobre a proteção da diversidade cultural da UNESCO
de 2005, rubricado pela U.E., ou as múltiplas proclamações feitas no Conselho
da Europa, muito ativo na definição de boas práticas neste domínio.
Existem também inúmeras resoluções do Parlamento Europeu no
mesmo sentido: por exemplo, em 3 de abril de 2012, o Diário Oficial da U.E.
publicou uma resolução que proclama o papel fundamental "de um sistema
europeu dual de rádio e televisão verdadeiramente equilibrado", exigindo
um financiamento estável e suficiente e "apelando aos Estados-Membros para
que ponham fim à ingerência política no que diz respeito aos conteúdos
produzidos pelos organismos de serviço público".
No Relatório do Conselho para a Reforma dos Meios de
Comunicação Públicos do Estado de 2005, foi dada ênfase às estruturas de
governação e financiamento, como condições sine qua non para consolidar um
serviço público autêntico; embora também tenha sido assinalado que estas
estruturas, por si só, não garantiam o sucesso, na ausência de consciência dos
agentes políticos e, sobretudo, da sociedade civil. Portanto, concluiu-se que a
falta de estruturas adequadas condenou o serviço público à crise permanente,
sua degradação e, por fim, sua marginalização ou extinção.
Paralelamente e em escala internacional, um relatório da
UNESCO do mesmo ano também reconheceu que “poderia ser simplista supor que uma
réplica completa desses sistemas e práticas em diferentes ambientes produzirá
os mesmos resultados benéficos”. Porque "como em outras esferas de
atividade, o sucesso ou o fracasso do serviço público de radiodifusão depende
de uma série de fatores, incluindo a sua história local, geografia, cultura,
ethos político e condições sociais e económicas" (UNESCO, 2006).
Recordar esses elementos básicos da boa governança ajudam a
enquadrar a situação. Ainda mais no contexto de um sistema mediático e
televisivo que evoluiu consideravelmente, não só pelo impulso das mudanças
tecnológicas ou da crise económica, mas também como consequência de decisões
políticas e regulamentares que, frequentemente, foram envoltos nesses fatores
para melhor moldar o espaço público de forma partidária.
Diz Castells, um dos meus autores de referência, que estamos
a testemunhar uma clara “crise de legitimidade democrática”. Essa ascensão da
síndrome do descontentamento cidadão, que atinge a democracia representativa,
incluindo os meios de comunicação e os jornalistas, "não deve ser
interpretada como uma crise da política, mas como um processo de mudança”, com
a procura de novas formas de participação política e aprofundamento da
democracia, com novos representantes da sociedade civil e o combate à corrupção
visando a regeneração do sistema político.
A atualidade política portuguesa mostra que a transparência
não é fácil, acentuando-se a dificuldade de controle de enriquecimentos não
justificados. Num ambiente global de mobilizações de protesto social sem
precedentes (da Islândia em 2008, passando pelas primaveras árabes e o 15-M espanhol
em 2011, até Hong Kong em 2014 e 2020), a ação direta coletiva é combinada com
a ação desencadeada na interconexão social.
Espera-se, assim, uma nova conceção democrática ligada ao
Governo Aberto, de transparência informativa dos atos públicos, mas também de
compreensão da democracia como um processo de construção coletiva da sociedade
em que os cidadãos desempenham um papel ativo como "produtores de
governança". Uma profunda transformação da participação direta e do
controle dos cidadãos/usuários que as novas redes possibilitam hoje e que é
perfeitamente “compatível com a responsabilidade (accountability), com a
eficácia e eficiência da boa governança”.
Respeitando as competências dos Parlamentos, como autêntica
representação da sociedade, é necessário dar voz direta à sociedade civil e às
suas entidades representativas a nível estadual e local, colocando-as no centro
da gestão e do controlo das suas missões; além disso, é necessário encontrar um
novo modelo viável e sustentável de financiamento do serviço público e tentar
consciencializar o público sobre a sua capacidade de influenciar as redes
sociais públicas.
Rentabilidade social
A lógica do serviço público europeu é regida pela ideia de
rentabilidade social. Esta rentabilidade social implica em termos democráticos
(pluralismo ideológico e participação democrática), com acessibilidade total
aos serviços audiovisuais para pessoas com deficiência; diversidade cultural
(promoção e divulgação de cultura de qualidade); e a defesa dos valores e dos
direitos humanos e sociais, desde a luta pela igualdade de género e origem
racial até à expressão e defesa das minorias e o apoio informativo e valores do
Estado Providência.
A utilização de indicadores que refletem o pluralismo
político e social já se tornou uma prática sistemática dos serviços públicos e
das autoridades audiovisuais europeias. A rentabilidade social engloba esses aspetos,
mas tem de ir muito além e refletir-se num conjunto de indicadores que meçam o
impacto do serviço público sobre os cidadãos.
A rentabilidade social do serviço público assenta,
singularmente, em alguns conteúdos cuja divulgação cumpre uma importante função
no domínio da educação, saúde, cultura, desporto, acessibilidade para pessoas
com deficiência, igualdade de género, exercício efetivo dos direitos
fundamentais e, em geral, nas campanhas de consciencialização cidadã, cujo
impacto dos programas vai muito além das campanhas institucionais planeadas.
O serviço público devia desempenhar um papel importante ao
nível da inovação cultural e criativa (incluindo o desenvolvimento de novos
formatos audiovisuais) e desempenhar um papel essencial na literacia e no
acesso às novas tecnologias e redes digitais.
Porém, a cidadania tem dificuldade em ver o serviço público
comprometido com a ideia de uma comunicação de “interesse social”. Desconhece-se
qualquer avaliação de impacto social neste sentido, bem como da sua
quantificação económica como investimento em capital social.
Já em 2005, o Relatório do Conselho para a Reforma propôs
indicadores de controle para medir o pluralismo e a diversidade (ICR 2005, pp.
85-87). Os conteúdos que podem ser considerados de interesse social, como
prevenção à saúde, obesidade infantil, cancro, combate ao bullying, violência
de género ou acidentes de trânsito.
A criação de sinergias entre as diferentes plataformas é
essencial. Sem abandonar a produção de conteúdos para os canais tradicionais, a
capacidade de produção do serviço público de radiodifusão deve ser colocada ao
serviço da criação de novos conteúdos para plataformas interativas, mas em
sinergia com a programação tradicional.
A programação, nos tempos atuais, deve ser pensada em termos
de consumo linear e não linear, num compromisso social de televisão e rádio.
Toda a programação e conteúdo devem estar disponíveis em plataformas
interativas.
Participação e
comunidade.
A interatividade e a participação do público devem ser
valores desenvolvidos transversalmente, tanto na programação linear quanto em
plataformas interativas. Bustamante chega a propor que todo o conteúdo deve ser
projetado para criar comunidades. E sublinha que a participação em redes
sociais e a incorporação de conteúdos criados pelo público exige novos padrões
em Códigos Deontológicos e Livros de Estilo.
Personalização.
O tratamento dos dados coletados em plataformas interativas
deve ser aplicado para melhor determinar as necessidades do público e permitir
a personalização do conteúdo. Há que estabelecer critérios de acesso a
conteúdos especiais, convite para programas, debates, etc., para além do
direito de participar na eleição do conselho geral independente.
O tratamento dos dados será realizado respeitando os
direitos dos usuários e sem qualquer exploração comercial posterior. Todos os conteúdos
e serviços devem ser customizáveis e permitir ao usuário consumi-los em
diferentes plataformas a qualquer hora, lugar e dispositivo.
O esforço a desenvolver deve compatibilizar-se com o caráter bilateral da taxa. Ou seja, é
também um pagamento que deve ser feito para receber algo em troca. No âmbito
público, por exemplo, ao pagarmos a taxa de saneamento básico estamos a receber
em troca o serviço de recolha de lixo das ruas, providenciado pelo ente público.
Também aí há uma troca de serviço pelo pagamento. Ora, a taxa do audiovisual
sempre foi de bilateralidade problemática. Não há a linearidade do exemplo
citado. Ou seja, a escolha do serviço não se liga, diretamente, à vontade
própria do utilizador.
A bilateralidade mitiga-se no conselho geral e no conselho
de opinião. Ao dar uma vista de olhos pelos seus componentes verifica-se uma umbilical
relação partidária. Com mais ou menos variáveis, a velha lógica mantém-se: assembleia
nomeia governo, governo nomeia administração, administração nomeia diretores, diretores
nomeiam chefes, o que resulta numa unilateralidade imposta
Procurando contrariar esta lógica, Henrique Bustamante
formou o Teledetodos.
Propostas de
participação cidadã de teledetodos
Bustamante acreditava que os meios de comunicação públicos
apostariam na participação cidadã efetiva e com toda a amplitude possível. A
sociedade civil (organizações e movimentos de cidadãos com capacidade
representativa) pode e deve estar ciente da importância que o serviço público
de comunicação pode ter na melhoria da qualidade democrática da vida pública e
no progresso da sociedade como um todo. Portanto, a sua presença nos mais altos
órgãos de gestão do serviço público e sua participação sistemática nas decisões
de programação e conteúdo devem ser consideradas lógicas e naturais.
Esta ligação entre os cidadãos e o seu direito à
participação efetiva deve traduzir-se numa mudança profunda nos canais e
procedimentos de consulta, de acordo com os princípios elementares do que deve
ser um governo aberto.
Além disso, o desenvolvimento de um serviço público exige
imperativamente, por razões de legitimidade e raízes na sociedade e como marcas
da doutrina europeia, uma gestão autónoma, controlada por autoridades externas
e independentes, bem como por uma comissão parlamentar; protegido da
interferência de governos e grupos de pressão privados e enraizado na
participação intensiva dos cidadãos.
Quem quiser, pode visitar o site https://teledetodos.es/
Rui de Melo
Doctor en Periodismo y Ciencias de la Información na
Universidad Pontificia de Salamanca
e licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto